terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Cronicas de uma viagem - Caminho de Santiago (parte VI)

Cronica 6 – Sobre erros e voltar atrás

Dia 7 – Redondela/Barro

Esta foi a maior etapa que fiz no Caminho, com cerca de 30 Km. Inicialmente, planeei ir até Pontevedra, sendo o percurso descrito como acidentado e passando pelo Alto da Lomba (5Km), Fonte, Arcade, Alto da Canicouva (12 Km), Rio Tomeza (15 Km) e Pontevedra (18Km). Mas um erro de atenção fez com que eu falhasse o albergue de Pontevedra e estava tão cansada e com tanto calor que não quis voltar para trás e andar 10 minutos até ao albergue. Paradoxalmente, prossegui: fui atravessando a cidade à espera de encontrar uma pensão simpática no caminho e, quando dei conta já estava a sair da cidade. 

Decidi continuar na esperança de que o próximo albergue não ficasse muito longe, mas os 12 Km que fiz a seguir foram bastante sofridos. Nesta etapa, pensei várias vezes em parar e dormir ao relento (nas traseiras de uma igreja, debaixo de uma latada, debaixo da copa de um castanheiro…) mas acabei por não ter coragem de o fazer e, com longos períodos de descanso, lá fui prosseguindo até encontrar o albergue do Barro já no final do dia. Dormi lá a melhor noite do Caminho.

Este engano e, sobretudo a decisão insensata que tomei de seguida, quase me fizeram desistir. Na verdade, quando decidi fazer o Caminho deixei sempre em aberto a possibilidade de, por qualquer boa razão, poder desistir e como não fui em penitência, isso não seria desastroso. Mas desistir não é algo que eu goste de fazer; talvez por isso fui persistindo, persistindo até ao final da etapa – e é assim que muitas vezes conduzo as dificuldades da vida, nem sempre bem mas com alguma resistência em deixar «coisas» a meio e muita dificuldade em «voltar atrás».

Quando sai de Redondela, ainda de noite como de costume, apanhei bastantes troços de estrada com grande espaçamento entre setas, o que me dava aquele frio na barriga de pensar que podia estar enganada. Os primeiros peregrinos que encontrei (o casal com a mulher mais velha e o homem com ar de segurança) voltavam atrás porque também pensavam que se tinham enganado mas ali eu estava segura (tinha visto uma seta à pouco) e pude assegurar-lhes que estavam bem. Deram meia volta e prosseguiram à minha frente, com um passo muito mais rápido do que o meu, pelo que depressa deixei de os ver.

Esta etapa tem troços florestados muito bonitos e belas vistas panorâmicas sobre o mar (que aqui parece um lago ou albufeira). Numa destas vistas, a Alicia de Málaga pediu para tirar uma fotografia a si e ao seu companheiro de viagem, um homem pequenino com ar de gnomo simpático. Depois, pediu para eu tirar uma fotografia com eles os dois para recordação – achei estranho mas consenti e acabei por também eu pedir para o gnomo me tirar uma foto com a Alicia. Estranho estes momentos, questionando-me sobre o que pensarão as pessoas (será que também me atribuem personagens?) e o que as levará a meterem conversa comigo; apesar de eu dificilmente tomar a iniciativa de conversar com alguém, estes momentos ajudam a descontrair.

Noutra paragem, passou o Hans Joaquim e conversámos um pouco antes de ele se pôr a caminho de novo (não o veria mais); ainda fiquei a comer alperces secos e nozes. De seguida pararam ao pé de mim 2 portugueses de Águeda, que vinham a pé desde casa, fizeram 40Km/dia nas duas primeiras etapas e diziam ter os pés cheios de bolhas. «Mas as bolhas são para pisar, não é?», dizia o mais novo com ar um pouco abrutalhado, quando ambos seguiram caminho em boa velocidade. Achei-os bastante lunáticos…mas cada um sabe de si.

De qualquer forma eu hoje ando a passo de caracol e tenho a sensação que todos os peregrinos passam por mim. Até os passeantes de domingo – sim, porque neste troço vi muitas pessoas que deviam ser habitantes locais a fazer a sua caminhada de domingo. Um destes passeantes (acompanhado de uma senhora) depois de desejar bom caminho, como todos faziam, perguntou de onde eu era; quando disse que era de Lisboa, o sorriso abriu-se e disse que tinha estado 4 anos em Portugal e tinha gostado muito. Seguiram, muito mais ligeiros do que eu, deixando-me com aquela ideia de que os estrangeiros apreciam mais Portugal do que os próprios portugueses.

Parei a 1km de Pontevedra num café/tasca regional para a ração do costume: água, dois sumos de fruta e um café – esta é outra constância do caminho. Falhei o albergue de Pontevedra. Vi o sinal, mas fiquei na dúvida se deveria seguir ou virar à direita. Optei por prosseguir, seguindo os 3 homens «língua-de-trapos» que me ajudaram a ajeitar a vieira na mochila quando a comprei.

[Apenas em Arcade, localidade conhecida pela sua ponte medieval, encontrei os habitantes a vender vieiras aos peregrinos, provavelmente aproveitando o recurso que o mar-lago lhes deposita à porta. Comprei a minha por 2 € a uma jovem e simpática senhora marroquina que tinha duas crianças pequenas a espreitar pela porta entreaberta]
Fig 2: Pontevedra
Andando pelo meio da cidade mais 10 minutos sob um sol escaldante encontrei uma peregrina espanhola com quem já me tinha cruzado e perguntei-lhe pelo albergue; ela confirmou que teria de voltar para trás. Era uma da tarde, estava um calor incrível e decido seguir em frente, até porque é domingo e não me apetece ver monumentos nem passear sozinha. No atravessamento da cidade percebo que é bonita, que tem um centro histórico muito antigo e bem preservado mas saí pela Ponte do Burgo tão depressa quanto pude.

Parei de novo à sombra de um bosque. Descalcei-me e inspecionei os pés: será que aguentam? Qual a distância que terei que fazer até outro albergue? 12 Km para Barro? Apetece-me desistir. Em Pontevedra passei no terminal rodoviário e apeteceu-me apanhar o primeiro autocarro para casa. Hoje andei todo o dia a perguntar-me porque é que estou a fazer isto? Porquê e para quê? Não posso negar que tem o seu quê de ‘sacrifico’ mesmo que eu não lhe atribua penitência nenhuma. Mas para quê? 

Passam muitas ideias na minha cabeça, entre elas a ideia de «esticar a máquina», como os carros velhos que de vez em quando precisam de andar a mais velocidade. Mas não é só isso. Também não é aquela coisa dos pecados, das promessas e da salvação, para as quais não tenho paciência nem convicção. Como é que me meti nestes ‘trabalhos’?

Lembro-me que a propósito de outras caminhadas (nomeadamente os percursos formativos mais longos e mais próximos da Terapia Familiar ou do Doutoramento) também me questionei assim. Às tantas parece que tenho que provar algo – o quê? A quem?

Será que preciso de me lembrar do que ainda sou capaz?

Será que preciso de segurança para seguir com o meu projeto? Qual é o meu projeto?

Talvez seja isso, talvez a decisão de fazer este caminho seja a forma que encontrei para me dar tempo de descobrir o que quero fazer da vida que me resta?

A verdade é que eu estou numa fase em que tenho o passado mais ou menos ‘resolvido’, tenho o presente tão ‘arrumado’ quanto pode estar nestes tempos de incertezas e não tenho projetos para o futuro. No meio de muita coisa que «era gira», que «podia ser», simplesmente não é, não sei ao que me proponho, não sei para onde vou, não sei se ainda quero algo. Talvez fazer o caminho signifique procurar sentidos e significados para o que ainda quero da vida.

Já acabei a água no cantil e as fontes por onde tenho passado não são seguras. Perdi a noção das distâncias e já não sinto nada, pareço um autómato. Só me vem à cabeça o disparate de não ter ficado em Pontevedra…

O caminho é quase plano, à beira rio e bastante sombreado. Tem passado poucos peregrinos a pé, mas alguns de bicicleta e outros a cavalo. Vou parando amiúde, mas não tenho coragem de pedir água a quem passa, nem sequer pedir informação sobre a distância do próximo albergue. Tenho um aperto no peito.
Penso em como estarão os meus filhos e algumas pessoas que me são próximas. [São 8 da noite em Portugal e 9 em Espanha. Já estou no albergue do Barro de banho tomado e roupa lavada, está fresco e é quase noite. Cá fora estão outras pessoas à conversa, sentadas em cadeiras de jardim; fui para uma mesa sozinha para escrever]

Estava eu, em desespero, sem me achar capaz de fazer o resto do caminho quando passa um jovem e percebo pelo sotaque do «bom caminho» que é português. Saudamo-nos e começamos a falar, vai de regresso de Santiago e eu pergunto-lhe se falta muito para uma aldeia ou para um albergue. Diz-me que não, que no fim da subida existe uma aldeia e que o albergue é um pouco mais à frente.

Ganho ânimo e faço-me ao caminho. No cimo da subida, ainda antes da aldeia encontro um casal de velhotes em passeio de fim de tarde, perguntam-me de onde venho? Sozinha? Dizem-me que o caminho é muito duro e que é bom fazer etapas mais pequenas (agora sei que têm razão). Dizem-me também que na aldeia posso parar, comer uvas e dormir, se quiser. Despeço-me deles com o coração aquecido porque me pareceram pessoas boas.
Fig 3: Rio Barosa, Barro
Na entrada da aldeia, paro num café com ‘hostel’ privado. O café tem uma esplanada coberta por uma latada linda e eu fico por ali a beber o sumo e o café da praxe. Servem-me ‘Compal’ e eu, alegre e surpresa, pergunto como é que fizeram esta opção? A senhora diz-me que o vendedor apareceu e que gostaram muito do sumo, que é melhor do que as marcas espanholas. Concordo e bebo dois. Peço indicações sobre o albergue e a senhora diz que é perto, apenas um km. Realmente, as distâncias são muito relativas, o que é 1Km para quem já andou 29? Retomo caminho e abasteço o cantil numa fonte que a senhora do café indicou.

Um quilómetro e 400 metros depois chego ao albergue. Ao chegar, a primeira impressão foi a de que estava a chegar a uma comunidade terapêutica. Não sei se foi por ser recebida por 2 homens com ar hippie e com cigarros apagados na mão… ou se estou a ser preconceituosa. Fui recebida na sala, onde estavam outros 2 homens, um fazia sumos naturais e outro ajeitava os legumes frescos que estavam para venda, alinhados em caixas numa das paredes; e tudo era normal, os duches, a camarata (bastante mais pequena), o local de lavar e secar roupa, a esplanada ajardinada lá fora.

O João e a Barbara, um casal de peregrinos polacos foram as pessoas com quem conversei, sobretudo com ele que era um falador (ou dominava melhor o inglês?). Fugiu ao regime comunista, foi para Itália e de lá para o Canadá onde esteve imigrado uma série de anos. Estão bem de vida, são católicos e fazem o caminho com motivação religiosa. Tem achado o caminho português muito bonito, com terras «gordas», muito férteis e cheio de água «que brota da terra». Diz que na Polónia já sentem muito a falta de água, que é frequentemente racionada em meio urbano e que já tem os lençóis subterrâneos comprometidos. Gostam muito de Portugal. Reparto com eles as últimas nozes que tenho e vou deitar-me. Está uma noite fria.

Isabel Passarinho

(continua...)

Sem comentários:

Enviar um comentário