quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Cronicas de uma viagem - Caminho de Santiago (parte IX)

Cronica 9 – O meu caminho e o caminho dos outros

Dia 10 –Padron/Santiago

Manhã fresca. Dormi bem e acordei cheia de energia. Quando fui tomar o pequeno-almoço na sala comum do albergue encontrei o gnomo. Deu-me um sonoro ‘bom dia!’, informou que depois de Santiago seguiria para Finisterra por uma jornada de mais dois ou três dias. Pediu para tirar uma foto comigo. Perguntei-lhe sobre os albergues até Santiago e ele mostrou-se conhecedor e preciso, sugerindo um que ficava a cerca de 4km da cidade e um seminário em Santiago – despediu-se desejando Bom caminõ!

Partilhei o meu pequeno-almoço com as duas jovens de leste (as mesmas que ontem se despediam com muita nostalgia de um belo moço português) – despedi-me delas desejando Bom caminõ! Depois, quando saí, ainda de noite cerrada, outros peregrinos partilharam comigo a luz das lanternas para iluminar o caminho até amanhecer. Quando começou a clarear o dia aceleraram o passo (ou eu desacelerei) e desejaram Bom caminõ!

A primeira paragem foi feita após 6 Km num café em Esclavitud (que raio de nome para uma terra) onde já estavam vários peregrinos. Entrei com a Sílvia, de Madrid, que tinha encontrado um pouco antes e que me disse que estava aflita com bolhas nos pés. Encontrei também as 3 fininhas de leste (afinal eram da Estónia) que comem como ursos e que já estavam no café; vieram pedir para tirar fotos connosco porque queriam ficar com uma recordação. Estive um pouco à conversa com a Sílvia que me disse que não sabia se conseguia chegar a pé a Santiago mas ia voltar para Madrid de avião porque a Ibéria tinha um desconto significativo para peregrinos e bastava apresentar a credencial. Nesta altura ainda não tinha decidido como voltaria para casa e fiquei a pensar na possibilidade de voltar de avião, mas não me preocupei muito, de avião, de autocarro ou de comboio, logo veria. Na saída do café retardei o passo para acompanhar a espanhola até entrar na imponente igreja de Esclavitud. 

[Não tenho ligado muito aos carimbos da caderneta de peregrino e só ali é que percebi que os peregrinos também vão carimbar nas igrejas. Até ali carimbei apenas nos albergues, em alguns cafés de que gostei mais e ontem fui carimbada por uma brigada da proteção civil que encontrei pelo caminho]

Depois de sairmos da igreja deixei-me ficar a acompanhar a Sílvia que andava a muito custo. Mas ela própria me pediu para seguir ao meu passo reforçando o que se diz por aqui, que ‘cada um faz o seu caminho’. Apesar de me fazer sentido é uma postura nova para mim e fico a pensar no meu caminho e no caminho de outros. Tenho ainda aquela coisa entranhada de «ajudar». Mas, bem vistas as coisas, cada um faz mesmo o seu caminho. Embora isso não seja entendido como um ato individualista ou egoísta, é um caminho em interação, só que realmente é de cada um, é a metáfora da vida de cada um – no meu caso não gostaria que alguém traçasse o caminho para mim, abdicasse do seu caminho para fazer o meu (ou me pedisse o inverso) ou me dissesse em que passo o deveria fazer.

Pelo caminho paro muito. Sempre que me sinto cansada e encontro um lugar simpático, paro. Quando me apetece petisco qualquer coisa (normalmente fruta fresca ou seca) ou escrevo. Em algumas paragens descalço-me, tiro as meias, ponho creme nos pés e deixo-os arejar. Depois ponho meias lavadas, volto a calçar-me e aguento mais um troço.[Estes pequenos cuidados, muito creme hidratante e a alternância entre dois pares de calçado têm sido as técnicas usadas para evitar ter bolhas nos pés e até agora tem resultado a 100%]

Fig 2: A caminho de Santiago de Compostela
Quando iniciei esta etapa pensei ficar no albergue que o gnomo me tinha indicado a cerca de 4Km de Santiago e chegar à cidade amanhã, mais fresca e descansada. Mas fui andando, andando e começando a ficar muito cansada, ligo o piloto automático e deixo de raciocinar. Vi algumas indicações de albergues pelo caminho mas como implicavam desvios, não liguei e foi prosseguindo. São 24 Km nesta etapa, num percurso nem sempre fácil e com várias subidas acentuadas, em especial na aproximação à cidade de Santiago.

Passei Milladoiro, a primeira localidade verdadeiramente suburbana que encontrei, sem graça, cinzenta, com os arruamentos em obras, com grandes aglomerados- dormitório, espaços comerciais, um polidesportivo, um grande infantário modernaço (com movimento de saída de crianças a chorar como leitões para a matança, arrastadas por mães gordas e sem paciência  - o eco daqueles choros ficaram-me na cabeça durante muito tempo). Pouco depois desta localidade, avista-se Santiago.

O momento foi partilhado, por acaso (suponho eu) com as fininhas da Estónia que gritaram, bateram palmas e tiraram fotografias. Mas depois do avistamento onde a cidade aparece relativamente perto, o caminho dá voltas e mais voltas num trajeto sinuoso até chegar finalmente ao centro da cidade.

É particularmente difícil a subida para a cidade, por estradas e depois, por ruas que parecem não ter fim. Fiquei com a sensação de que a entrada se faz pelo lado de trás da cidade porque não se vê a catedral, nem o centro histórico. Ao mesmo tempo soma-se o desconforto de entrar numa cidade a meio da tarde, suada, cansada, cheia de pó e, provavelmente, a cheirar mal. Quando perdi as setas amarelas estava numa praça e não sabia que direção tomar. Na dúvida e muito cansada, sentei-me numa esplanada e pedi o de sempre: dois sumos de melocoton e um café solo.

Fig 3: Santiago de Compostela
Aproveitei o descanso para olhar em volta. O café com ar de bistrô francês chama-se Rosália Castro, a escritora venerada por aqui (passei ao lado da sua casa-museu em Padrón). Foquei-me nas pessoas que passavam: bem vestidas, apressadas, muitas com cara fechada e com olhar ausente, como se fossem máquinas. 

Estranhei. Durante o caminho tinha-me habituado a ver a maioria das pessoas de caras abertas que saudavam à passagem, esboçavam sorrisos e desejavam ‘bom caminho’. Quase me esqueci que a vida era assim, cheia de dormências e de defesas para nos entreter o tempo de vida em jogos de ‘papeis’ que não nos fazem felizes. Corridas e aparências para lado nenhum. Na verdade «eu sou mais campo» (como aquela private joke que diz ‘eu sou mais bolos») e preciso de ir procurando alguns sentidos para a vida. Claro que, quando estou do outro lado, ou seja, disfarçada de citadina, também devo ter o mesmo ar ausente e alheado. O tempo ficou enevoado e começou a cair uma chuva miudinha.

Perguntei ao jovem empregado de mesa pela Catedral e pelo Seminário Menor, o albergue de que o gnomo me falara, mas não me fiz entender e ele respondeu qualquer coisa, que eu também não entendi. Quando a chuva parou e eu me senti mais restabelecida pus-me a caminho. Á toa porque não voltei a ver as setas, segui a intuição (ou lá o que seja) e fui dar com o Campus Universitário. É curioso não achar a catedral numa cidade como esta e achar a universidade – dá que pensar. Talvez porque a relação com o conhecimento tem maior peso na minha vida do que a espiritualidade ou talvez por acaso. Sei lá.

Passei num parque urbano com a sensação de que estava a dar uma volta redonda. Perguntei pela catedral a uma senhora e ela deu-me a indicação. Estava perto. Mais uns minutos e avistei-a – imponente. Impossível de passar despercebida. Afinal tinha dado uma volta, por fora, ao centro histórico e não encontrei a tradicional entrada do caminho português, a Porta Faxeira. Agora que estava localizada, era preciso pensar em alojamento. O cansaço não permite grandes buscas e opto por uma pensão que me parece com bom ar numa envolvente simpática (31.00€ pela noite é um preço possível).
Fig 4: Catedral de Santiago
Quase ao pé fica o Instituto profissional de S. Clemente, numas instalações conventuais recuperadas e pelos jovens que circulam nas imediações, deduzo que deve ser uma escola profissional de segunda oportunidade para jovens com percursos mais difíceis. Penso no meu filho G. e na sua relação desastrada (ou desastrosa) com a educação e nas coincidências do que me surge no caminho – tenho a certeza de que, apesar do traçado do Caminho Português ser só um, o caminho tem desafios diferentes consoante as pessoas e cada peregrino fará as suas próprias associações e interpretações.

Depois de um bom banho e muito creme, deitei-me e adormeci. Acordei pelas cinco horas da tarde e obriguei-me a ir à rua (se tivesse feito a vontade ao corpo teria ficado a dormir). Começava a ficar escuro e chuviscava. As ruas do centro histórico estavam repletas de gente e muito animadas. Atuações musicais, esplanadas cheias, gente de todo o mundo nesta cidade que é património da humanidade e que faz por merecer a distinção, está cuidada, investida, preparada para receber os visitantes. Fui à majestosa praça da catedral, entrei na catedral e sai num registo de instantâneo fotográfico. Não ia com uma intenção precisa, estava apenas a dar uma volta de reconhecimento porque já não me lembrava da cidade e … encontrei o gnomo. Perguntou-me se estava sozinha e se queria ir tomar algo com ele. Concordei e fomos andando por aquelas ruas e conversando.

O gnomo é um expert (diz que faz o caminho à 12 anos, que não liga à igreja e que é sobretudo para treinar as pernas, para gerir o stress e para conhecer pessoas de todo o mundo) e aconselhou-me logo a ir aos Serviços do Peregrino (habitualmente com filas de várias horas) carimbar o passaporte e buscar a ‘Compostela’ – uma espécie de certificado da viagem. Aproveitei o guia e lá fui carimbar o Passaporte (é recomendado que seja carimbado em todas as paragens do caminho) e receber a Compostela -passada apenas aos peregrinos que tenham feito pelo menos 100 km a andar ou 200 Km de bicicleta ou a cavalo.

Depois escolhemos uma esplanada numa artéria animada ao lado de um teatro e pedimos 2 copos de vinho para fazer uma saúde – ele escolheu um Rioja muito agradável e nada caro (pagámos apenas €2,00 cada um por um copo de balão bem fornecido). Brindámos ao caminho e à vida, com o inevitável desejo de saúde para nós e para «os nossos».

O gnomo gosta de falar: é um homem rústico, vive numa vila de montanha lá para os lados de Alicante, numa terra cujo nome não fixei, que tem 2000 habitantes e onde toda a gente se conhece. Planta a sua horta e, pelo que percebi, está reformado. Vai prosseguir o caminho até Finisterra e de lá vai a Vigo ver um jogo de futebol – conta que uma das estrelas da equipa é um jovem seu conterrâneo que lhe ofereceu o bilhete para o jogo e que faz muito gosto, sobretudo porque gosta do rapaz e enaltece-lhe as qualidades de não ficar envaidecido com o sucesso e ajudar a família.

Este foi um dos encontros improváveis que o caminho proporciona - não gosto de fazer perguntas sobre a vida dos outros nem de falar de mim, por isso depois de trocarmos umas generalidades, a conversa esgotou-se. Começou a chover com maior intensidade e despedimo-nos com votos sinceros de continuação de bom caminho. Cada um seguiu em direções opostas.

São 21h. Estou no quarto de uma simpática pensão em Santiago de Compostela e antes de dormir penso nesta aventura e no quanto ter feito o caminho me iluminou as ideias? Ou as deixou mais claras? Ou ajudou a tomar decisões? O que é que eu ganhei com esta viagem? Hoje está claro que o meu projeto, qualquer que ele seja, tem de ter raízes em contexto rural e que os velhos e os deficientes estão no meu caminho… mas isto eu já sabia. Pronto, não vou tirar mais ilações… Estou cheia de sono.

Isabel Passarinho

(continua...)

1 comentário: