sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Crónica Social - Para onde vão os dias que passam?

Há tempo que esta pergunta me anda na cabeça.

Não é minha, mas integrei-a de tal forma, que quase me parece minha. Como uma filha adoptiva que à força de ser amada, já não faz diferença que tenha nascido em outra família.
Na verdade foi uma educadora amiga no meio de um relato muito vivo do seu dia escolar que me contou, perplexa, que o menino João (vamos chamar-lhe assim) no contexto de uma actividade pedagógica lhe tinha feito esta pergunta.

Passou muito tempo. O menino da pergunta já deve ser quase-homem. Sim, porque ser homem acontece cada vez mais tarde. Mas a pergunta, essa nunca esqueci.
Talvez o poder desta pergunta seja a não resposta… fico ali a remoer, só a pensar, perdida em viagens no tempo. E se me fizer a pergunta não sei responder.
Qualquer tentativa de resposta será menor e uma pergunta destas não merece.
A sua importância reside no espaço que abre …

Não faço grandes balanços no final de ano, mas sou fascinada pelo poder das perguntas verdadeiras. Aquelas para as quais não temos respostas e que desaprendemos de fazer com o avançar na vida e a submersão em rotinas, certezas e pragmatismos utilitários.
Quantas vezes fazemos perguntas mais ou menos retóricas? Afirmações com ponto de interrogação a pedir só para serem confirmadas.

- É assim, não é? Não me estás a dizer isso, pois não? Onde é que isto vai chegar?...

Lembro-me de um professor do curso de Terapia Familiar que falava das ‘perguntas dormitivas’ para nomear as perguntas que lhe davam sono e que não colocavam nenhuma questão - quantas vezes nos esquecemos de perguntar, em situações desconhecidas ou que desafiam o nosso conhecimento?

- Não sabia que podia perguntar, diz Júlia, a medo.

O medo que nos paralisa, as rotinas que nos embrutecem, a dessensibilização que fazemos para não sofrer (- Não me doeu, dizem algumas crianças em desafio), a normalidade que nos enforma e nos faz esquecer quem na verdade somos, calando aquela criança que fazia perguntas.

‘- Não sabes? Eu também não. Vamos descobrir juntos?’ – dizia João dos Santos, o pioneiro da psiquiatria infantil à criança que atendia no seu consultório. E pela grandeza do seu legado e das suas histórias acredito que o Mestre estaria a ser verdadeiro quanto a ‘não saber’ sobre o sofrimento da criança e as hipóteses de o diminuir.

Em tempos em que o mundo supostamente civilizado está entregue a atores medíocres e perigosos, acometidos de uma loucura que se permite reverter conquistas civilizacionais que (estupidamente) alguns de nós demos por garantidas e ‘as águas’ se agitam entre mil guerras um pouco por todo o lado… para onde vão os dias que passam? Em tempos de banalização do mal (como diria Hannah Arendt) em que as pessoas se alheiam umas das outras e de si próprias, fechadas nas tecnologias que supostamente as globalizam, e estranhas aos outros próximos … para onde vão os dias que passam? Em tempos de hipervalorização de eficácias, de resultados, de ‘acelerações’, de competitividade mesmo que mascarada de cooperativa…para onde vão os dias que passam? Em tempos de rarefacção e alienação do trabalho, em que as pessoas já não são o que fazem mas também não são mais nada a não ser consumidores controlados digitalmente pela promessa de satisfação rápida que o dinheiro pode ou não pode comprar… para onde vão os dias que passam?

A História ensina muito sobre o que foi. Mas é pouco útil para usarmos hoje. Nos desafios que nos atormentam aqui e agora. Talvez para isso existam as histórias. As histórias de gente banal. Existe tanta gente, todos os dias, a fazer tanta coisa boa. Gente anónima. Cheia de defeitos e qualidades.

Era assistente social e responsável técnica por um Lar de idosos. Uma instituição de cariz associativo que foi crescendo ao longo de 4 décadas. Tinha hoje um universo de respostas sociais bastante diversificado e que apoiava muita gente. Era também um grande empregador local. E um polo de cuidado aos velhos e às famílias e de relações positivas, fortalecedor do tecido social. O seu quotidiano era de loucos! Dias compridos, corridos entre gestão de pessoal, dinamização de atividades, gestão de relações e conflitos, controlo de muitas variáveis, redes de parceria, actividades agendadas e outras que entravam pela agenda dentro, sem aviso.

Atrasou a reunião onde íamos falar sobre uma experiência laboral de um jovem com deficiência pela urgência da sobreposição de outros assuntos – tinham vagado 2 quartos e existiam dois casais de namorados no Lar (sim, as pessoas de idade avançada ainda têm sentimentos e podem apaixonar-se) que pretendiam mudar para quartos de casal. Por um lado a pressão de rentabilidade dos quartos que não podem estar vagos, por outro a necessidade de assegurar que todos os intervenientes estão de acordo com a nova opção. E nos dois casos, existiam filhos que não estavam de acordo.

Apesar de os idosos estarem na posse das suas faculdades, os filhos comparticipam na mensalidade do Lar e precisam de ser consultados e dar consentimento. É necessário informar, gerir sentimentos, negociar, procurar soluções, gerir revoltas e acautelar que as pessoas residentes se continuam a sentir, o melhor possível, na nova casa colectiva.

Este é um exemplo pequeno de que existem trabalhos sui generis. Onde a fronteira é ténue entre ser trabalhador por conta de outrem, com um contrato que prevê x tempo por y dinheiro em determinadas condições, e ser ‘uma pessoa que se sente responsável pelo bem-estar de outras’. A dedicação, o consumo de energia, o gasto de tempo são tão intensos e prolongados que muitos destes técnicos vivem as suas vidas no trabalho. Dão o melhor de si nestes dias cheios de situações, mais ou menos emergentes, que precisam de ser resolvidas, com grande disponibilidade emocional, mas também com trabalho de registo, de avaliação e planeamento que muitas vezes é levado para ser terminado em casa, porque o horário tipo de trabalho é cheio de coisas que não podem esperar.

A chegada a casa (diferente quando existe família e quando não existe, diferente quando a vida está calma ou revolta) é muitas vezes só o espaço e o tempo de carregar baterias para conseguir estar capaz no dia seguinte. Algumas pessoas conseguem trabalhar assim toda a sua vida activa...

- No meu tempo… dizem algumas pessoas, referindo-se ao tempo da sua infância ou juventude. Como se tivessem sido puxadas para trás. Como se o tempo actual não fosse delas. Como se hoje só houvesse tempo para os jovens com menos de 35 anos. Ou 40? Ou 45?
Não interessa onde está o marco.
Não quero correr o risco de dourar tempos passados por lapsos de memória ou efeito de distância. Ou simplesmente por vazio e desesperança do hoje e do amanhã. Não quero viver a recordar outros tempos.

Quero acreditar que nas atuais tensões, nos movimentos sociais anti mainstreming que surgem e se conectam também um pouco por todo o lado existem opções, possibilidades, sementes de mudança. Individual e colectiva. Mas é preciso gastar muita energia para continuar a acreditar, para não nos deixarmos ir na enxurrada, para resistir, procurar sentidos novos, para lutar contra as nossas incoerências. Para procurar. Para procurar sempre.

Para onde vão os dias que passam?

Isabel Passarinho

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Rogue One

Rogue One é o oitavo filme do universo Star Wars mas é o primeiro do seu género. Ao contrário dos restantes (episódios I – VII) este filme não retrata parte do enredo principal (focado na família Skywalker) mas sim uma side story encaixada temporalmente entre o Episódio III: A vingança dos Sith (2005) e o Episódio IV: Uma nova esperança (1977).

Esta história foca-se no processo que levou a Aliança Rebelde à descoberta de uma falha estrutural na Estrela da Morte, facto que permitiu a sua destruição no Episódio IV num momento épico que serviu de mote à restante saga. Uma nova esperança foi isso, a destruição da mais poderosa arma, capaz de destruir planetas, de um pérfido império que ameaçava tomar a galáxia através do terror e da força. Mas uma nova esperança não seria possível se alguém não fosse capaz de descobrir os segredos da Estrela da Morte e fazê-los chegar aos rebeldes.


E é neste ponto que nos é apresentada a família Erso, Galen um cientista de grande valor para o Império Galáctico que, no início desta aventura vive em retiro no planeta Lam’hu com a sua mulher Lyra e a sua filha Jyn, numa existência aparentemente simples e idílica. Tudo isso acaba quando o Império descobre e visita Galen para o forçar a construir a Estrela da Morte.

Fig.1: Jyn Erso (ao centro) e os seus gunas
Jyn perdeu pai e mãe nesse instante e ficou entregue aos cuidados do amigo dos pais e comandante rebelde Saw Guerrera, mas algo não correu bem e quando voltamos a encontrar a jovem Jyn ela é já uma mulher feita e prisioneira das forças imperiais. Daí em diante assistimos às suas aventuras e desventuras, à sua colaboração com a Aliança Rebelde e ao contacto com a vida e obra do seu pai, até ao inevitável reencontro, sempre com a ameaça negra do Império a pairar sobre si, e o Império tem sombras negras ao seu serviço…

Rogue One faz um excelente serviço a explorar o riquíssimo universo Star Wars, introduzindo vários planetas, espécies alienígenas, designs de naves e toda uma panóplia de referências arquitectónicas e culturais que se tornaram icónicas em Star Wars e que mergulham o espectador numa experiência deliciosa que mistura a nostalgia da trilogia original com a tecnologia dos dias de hoje.

O enredo denso e bem escrito dá uma profundidade certa às personagens e ao seu meio envolvente, cativando quem vê e dando-lhes relevância, contexto e conteúdo, algo que em algumas situações falhou no recente Episódio VII e que influencia sobremaneira a nossa vivência do filme. O equilíbrio humor-drama está também muito bem conseguido. Num filme com uma aura mais negra do que a saga nos habituou, os rasgos secos e directos do droide K-2SO servem de bálsamo a uma realidade desolada por guerra e morte e arrancam boas gargalhadas.

Fig. 2: Backstreet Boys

Destaco ainda Chirrut Îmwe, um monge invisual do templo de Jedha que nos traz essa aura mística que os Jedis deixaram mesmo após o seu desaparecimento, através apenas da sua proficiência marcial com um bastão e uma fé inabalável na Força.

Com este e outros companheiros improváveis, o percurso de Jyn Erso dá-nos uma perspectiva diferente de toda a saga que precede este filme: desta vez a luta da Aliança Rebelde contra o Império Galáctico não nos é mostrada pelos olhos de poderosos cavaleiros Jedi ou os seus contrapartes negros, os Sith, grandes generais, senadores ou imperadores, mas através de gente comum que se junta com os poucos recursos que tem, com grande sacrifício para lutar pelo bem comum, pelo que acreditam, contra a tirania do Império.

Esse é a meu ver o maior feito de Rogue One.

Fig. 3: Chirrut Îmwe segundos antes de desgraçar a vida a estes traquinas

Não sendo esse o foco desta análise, a comparação com o Episódio VII é inevitável por serem os dois representantes desta nova geração de filmes Star Wars, e quando postos lado a lado, Rogue One destaca-se positivamente devido ao melhor enredo (não repetição de histórias prévias), personagens mais densos, maior variedade de referências e elementos cénicos e culturais que fazem de Star Wars, Star Wars, e que tudo junto torna a experiência mais coesa, coerente e capaz de, não só entreter mas deliciar.

Em jeito de conclusão quero deixar nota positiva para o realizador Gareth Edwards que, numa era em que o cinema sofre da febre do “tem que ser trilogia nem que seja à lei da marreta” conseguiu fazer um filme de excelente qualidade, com princípio, meio e fim, que se encerra em si próprio e não perde qualquer valor por isso, pelo contrário. Consegue explorar um novo tom, muito mais negro e cru sem perder o tom fantástico da saga levando quem vê o filme a sentir que está simultaneamente a ver Star Wars mas algo que nunca viu antes em Star Wars, o que, aqui entre nós, cativa.

Um filme obrigatório para os fãs da saga!

Fig. 4: Lord Voldemort

Classificação:





Nuno Soares 

domingo, 25 de dezembro de 2016

Mês da Poesia: Nas Asas da Poesia - Mais um Natal que chegou



Mais um Natal que chegou
Mais um Natal vai passar
E pensamos no que mudou
E no que nunca irá mudar.

O Natal traz nostalgia
E em todas as lembranças
Está presente a alegria
De quando éramos crianças.

Em cada nossa memória
Está um bocado de nós
E nelas guardamos a história
De netos, filhos e avós.

Uma família é inconstante
Cresce e também diminui
Mas o que é mais importante
É o amor que a constitui.

Novos membros vão chegando
Outros membros já não estão
Mas todos eles vão tocando
Nossa alma e coração.

Os que entre nós já não estão
Connosco estão a celebrar
Pois o Natal é união
Que eternamente irá durar.

Marco Gago

sábado, 24 de dezembro de 2016

Sorteio de Natal - Resultado

É com grande alegria que o Opina anuncia que o vencedor do sorteio de Natal 2016 é: Jorge Martins!

Parabéns Jorge! Ganhaste um "imagem d'escrita"! 


A todos os participantes deste sorteio o nosso agradecimento, desejos de um feliz Natal e um genial arranque de 2017!


terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Som na Fita - The Fountain




“Every shadow no matter how deep is threatened by morning light.”


A citação, vinda do próprio filme, reflecte o espectro da banda sonora que amplifica a história de amor, morte e ressurreição de “The Fountain”. Por entre tons de cordas melancólicos, ou momentos mais carregados de mistério e desafio, culminando em catarse apoteótica, rematada por um piano lírico e simplesmente belo, a música confere uma obscura profundidade luminosa à saga metafísica da busca da imortalidade. Sob a batuta de Clint Mansel (rever o Requiem for a Dream), Mogway e o Kronos Quartet dedilham a alma deste grande filme, feito de uma etérea cenografia, de uma íntima espiritualidade, de uma história dedicada aos pormenores e aos momentos maiores que a vida…


Rafael Nascimento

domingo, 18 de dezembro de 2016

Sorteio de Natal - imagem d'escrita

Este ano o nosso sorteio de Natal está de volta e porque é também o mês da Poesia está a prémio um exemplar do “imagem d'escrita” do poeta Roberto Leandro!


Habilitar-se a ganhá-lo não podia ser mais fácil, bastando para tal seguir estes 3 passos:

1 - Fazer "gosto" na página de Facebook do Opina - Espaço de Divulgação Cultural.

2 - Fazer "gosto" na página de Facebook do imagem d’escrita.

2 - Gostar deste post e comentá-lo, identificando amigos.

O concurso é válido até às 23:59 de 23 de Dezembro de 2016, para residentes em território nacional. O resultado do concurso será publicado no blog, na página de Facebook e por mensagem privada ao vencedor. 

Não percam a oportunidade de ter convosco da melhor poesia que se faz em Portugal nesta quadra natalícia.

Boa sorte e boas opinações!



Mês da Poesia: Nas Asas da Poesia - Família de Cruzília


Sou mineiro de Cruzília
venho de grande família
- professores brasileiros
já nascemos com letreiros
assim todo santo dia
nossa ceia é a poesia,
trovas, madrigais, sonetos,
alegrando filhos, netos.

 Caio Junqueira Maciel

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Mês da Poesia: Nas Asas da Poesia - Família universal



Esta época natalícia
Tem algo de especial
Tudo nela é uma delícia
Mas não há melhor que a carícia
P’ra com cada nosso igual.

O calor no nosso peito
Abafa o frio lá fora
Todo o mundo é mais perfeito
Pois cada um ao seu jeito
Algo em si próprio melhora.

Todo o Natal é família
Toda a família é Natal
Esquecemos cada quezília
E juntamos a mobília
Para uma noite especial.

Toda a família é amor
E todos nós, no Natal,
Partilhamos qualquer dor
Somos família sem cor
Somos família universal.

Marco Gago


P.S: O Mês da Poesia é um desafio interactivo promovido pelo Opina com o objectivo de dar espaço aos nossos leitores para partilharem os seus escritos poéticos. O Mês da Poesia será realizado regularmente de 2 em 2 meses subordinado a uma temática apresentada no primeiro poema de cada mês. O tema deste mês de Dezembro é: Família. Enviem-nos os vossos poemas por mensagem privada na página de Facebook do Opina ou por comentário aqui no blog. No caso de haver uma enxurrada de poemas, faremos uma pré-selecção e os poemas seleccionados serão publicados, como de costume, aos Domingos. Boas leituras! 

domingo, 4 de dezembro de 2016

Mês da Poesia: Nas Asas da Poesia



 Famílias

São os avós, os pais e os primos
Afilhados e os padrinhos
Os irmãos, os tios e amigos
Netos, filhos e sobrinhos

Paulo D. de Sousa

P.S: O Mês da Poesia é um desafio interactivo promovido pelo Opina com o objectivo de dar espaço aos nossos leitores para partilharem os seus escritos poéticos. O Mês da Poesia será realizado regularmente de 2 em 2 meses subordinado a uma temática apresentada no primeiro poema de cada mês. O tema deste mês de Dezembro é: Família. Enviem-nos os vossos poemas por mensagem privada na página de Facebook do Opina ou por comentário aqui no blog. No caso de haver uma enxurrada de poemas, faremos uma pré-selecção e os poemas seleccionados serão publicados, como de costume, aos Domingos. Boas leituras! 

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Crónica Social - Deixar ir

Desengane-se quem acha que se escreve com facilidade. No que me diz respeito, a escrita é sofrida.
Não necessariamente por ser autobiográfica.
O poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente’, diz Pessoa.
Sem veleidades, escrevo o que na altura me faz sentido. E fazer sentido implica alguma censura e renúncia também, numa cadeia de opções que é dolorosa. Existem temas e palavras que se impõem. Muita confusão. Depois até ao produto final é uma longa, sinuosa e poeirenta caminhada.
Começo várias vezes, deixo para trás muita coisa, corto, reescrevo, misturo assuntos meus com outros emprestados, baralho tudo e vou encontrando caminho pelo meio das palavras sem saber onde me levam. Como a água a escorregar por entre as tábuas do chão.

Às vezes para lado nenhum.
Queria escrever sobre o mundo, sem psicologia, sem vida interior, sem conflito, sem mim. Foi por isso que quis escrever sobre coisas, sobre os objectos que existem à minha volta’, diz o norueguês Karl Ove Knausgard[1] da sua nova obra. Acrescentando ‘Fujo a um contexto moral, a um contexto de significados (…). É a forma como o mundo existe que me interessa, embora nós estejamos sempre a hierarquizar as coisas, a atribuir-lhe valores distintos’.

Fico dividida. Sim, mas também. Ou seja, nesta Crónica Social interessa-me sobretudo a relação – comigo, com os outros, com o mundo. Com o mundo como o vemos, como nos vemos, à luz do nosso olhar. Em relações, que estão sempre a ser construídas e reconstruidas na interacção com os outros. Dolorosamente.
Seria tão mais simples se as coisas fora de nós fossem só coisas. Objectos físicos. Objectiváveis.
A mim, que aprecio a simplicidade, pouca coisa me parece simples.

Rosa pensava que gostaria de ser uma pessoa mais simples. Se pudesse escolher não complicava tanto. Não podendo (existem vidas que são sinas) complicava mesmo.
Não sabia explicar. Quando dava conta estava tudo enredado e ela atada, doída, sem saber das pontas. Só queria resolver. Mas acabava por virar tudo contra ela. E a Rosa precisava tanto de ser gostada.
Pensava que se fosse uma pessoa mais fluida, com maior capacidade de aceitar, até os medos, talvez a aceitassem melhor. Sentia-se certa, segura dos seus valores, injustiçada.
A rigidez de Rosa não a deixava descontrair. Julgava os outros e as situações, convencida que não o fazia. E isso trazia-lhe pequenas e grandes perdas.
Refém das suas certezas picava, em luta com a falta de suavidade’.                    

Conheço algumas Rosas. Às vezes parte de mim é Rosa.
Tenho momentos de fraqueza, maus momentos, em que deito tudo a perder. Outros de fragilidade. Outros de zanga, de irritação. Outros em que fico mal na fotografia.
A luta contra os moralismos, os nossos ‘bons’ moralismos, é incessante.
O que sei sobre a natureza e o funcionamento humano nem sempre previne reacções de Rosa.
O lado bom desta aventura é o que faz de nós gente. Pessoas incertas, com muitos lados e alguns menos bonitos. Com dias, com luas, com humores, com amor e falta dele. Sem coerência. A nossa frágil humanidade terá tanto de imperfeita como de resiliente.

Dizem que somos um país de fado.
Sem desprimor para esta expressão artística, saliento a conotação de um lado português fatalista, com tragédias mais ou menos levezinhas. Destino, sina, lamentos e queixas.
Dizem que somos um país que se queixa de mansinho, para o lado, em conversas de corredor que não chegam a lado nenhum. Tecemos enredo. Contornamos. Desenrascamos. Inventamos formas de subverter a regra ou de dar a volta. Somos provincianos. Pequenos e mesquinhos.
Somos também heróicos, capazes de grande humanidade e gentileza. Somos suaves, generosos e educados. Amamos os consensos e evitamos conflitos. Somos trabalhadores, dedicados e criativos. Somos o melhor, o pior e o assim-assim. Somos gente.

Deixar andar é levar a vida em gestão corrente pautada por ingredientes vários, sem ontem nem amanhã. Um dia de cada vez. Logo se vê.
Deixar ir é seguir o nosso caminho, deixando que outros sigam os deles. É aprender a confiar. É aceitar as nossas imperfeições e percorrer um percurso no sentido do desapego. É não reter sentimentos negativos que nos aprisionam. É ser amigável. Também connosco.
Valorizo o Deixar ir. Embora seja uma tarefa gigante.
Live and let live até certo ponto. Até ao ponto onde me cruzo com as minhas próprias arrogâncias, tensões e desejos de controlo.

Vi recentemente o filme Sete minutos depois da meia-noite[2] que fala de sentimentos de perda, medo e solidão e também da coragem e da compaixão necessários para os ultrapassar.
Conor, o menino protagonista, vive com a mãe doente com um cancro terminal e vai ser desafiado por um ser sobrenatural, uma árvore- monstro que lhe aparece naquela hora precisa. O monstro da culpa é uma metáfora poderosa que percorre toda a história até à aceitação da morte para poder fazer o luto.

Um exemplo extremo e doloroso sobre Deixar ir. Com histórias de moral surpreendente. Existem dores tão avassaladoras que têm potencial transformador.
Já fiz alguns lutos próximos e sei que é impossível ficar igual. Depois senti necessidade de activar a vigilância sobre os meus traços mais vincados – o que nos salva é o que nos mata.
Como nos harmonizamos?

Irrita-nos o outro ou o que o outro faz mexer em nós? Não me refiro aos ‘diferentes’ que estão no outro lado do mundo, mas aos ‘diferentes’ que estão ao nosso lado. Diferenças de ‘olhar’, de valores, de prioridades, de formas de ser e de estar.
By the way…Como é que ficamos Rosas?
Escrever dói.


Isabel Passarinho


[1] Este reconhecido autor contemporâneo ‘pinta com as palavras’. Ficou célebre com a obra ‘A minha luta’ com uma narrativa obsessivamente autobiográfica- utilização de excertos da entrevista na Revista ‘E’ do Jornal Expresso de 12 de Novembro de 2016, em artigo de Cristina Margato .

         [2]Do realizador catalão J.A.Bayona. Inspirado numa ideia original da escritora Siobhan Dowd que morreu de cancro em 2007.

domingo, 27 de novembro de 2016

Nas Asas da Poesia - Sofrimento


Vejo, à minha volta, gente
Que tanto está a sofrer
E sinto-me impotente
Por pouco poder fazer.

Quero ajudar os que amo
Quero vê-los a sorrir
E à felicidade clamo
Que os possa descobrir.

O sofrimento que vejo
É físico e também mental
E tudo o que eu mais desejo
É que tudo volte ao normal.

Que a paz possa crescer
Dentro destas almas perdidas
E que as noites a sofrer
Sejam memórias esquecidas.

Marco Gago

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Som na Fita - It follows

Buhhh¡ E com um susto sopramos o pó da fita e passamos a ter “O Som na Fita!”

A primeira ilustração sonora que chega aos nossos ouvidos vem do filme It Follows. A película de terror, que evoca as velhas glórias dos anos 80 do cinema de horror, pinta-se com uma banda sonora negra (novidade!). Puxando dos sintetizadores (RIP John Carpenter), a música acompanha o drama de Jay, perseguida por uma entidade asquerosa, silente e incansável. Desesperada, a rapariga foge por entre um genérico subúrbio em decadência, assombrada pela ominosa banda sonora…
Aqui vos deixo com uma música opressora e deprimente (by Disasterpeace) que acompanha um soberbo filme de terror. Poderá acompanhar também os vossos dias? 


Rafael Nascimento

domingo, 20 de novembro de 2016

Nas Asas da Poesia - Mais


Os ais demais
Não são ais a mais

Os ais dos nossos pais
O ai o carago
Os ais dos hospitais
Os ais de quando vais 
Ai agora aposta-se no mar
Ai que agora é que vai ser
Ai minha nossa Senhora, meu deus do céu
Ai, ai que me queimei no tacho
Ai que grande cabeçada na esquina
Ai onde é que deixei as chaves?
Ai que dia é hoje?
Ai que horas são?
Ai a minha prima!
Ai a tua prima!
Ai que me esqueci de lhe dizer!
Ai! Os meus genitais
Ai o aquecimento global
Os ais dos geniais
Ai que me roubaram o carro
Ai que nem posso
Ai o forno!
Os ais das avaliações ambientais
Ai onde anda a minha cabeça?
Ai que me assaltaram a casa.
Ai sim?
Ai que treta
Ai o Will Smith
Ai o João Pedro Pais
Ai os meus sinais aumentaram de tamanho
Ai que estou tão gordo
Ai a roupa no estendal!
O ai que me enganei nas contas!
Ai que não comprei a manteiga
O ai credo
O ai raios
O ai de ti
O ai de mim
Os ais dos suspiros finais

Paulo D. de Sousa

domingo, 13 de novembro de 2016

Nas Asas da Poesia - Frio


Um novo dia a nascer
E nós, de novo, a acordar
Sentimos os dentes bater
E todo o corpo a tremer
Porque está um frio de rachar.

O frio a nós nos abraça
Na rua e em nosso lar
Mas, para nós, o frio passa
E nem pensamos na desgraça
De quem não tem onde morar.

Temos tudo e eles nada
Nem mesmo família ou amigos
E, em noites de trovoada,
Vão andando pela estrada
Procurando por abrigos.

Faça chuva ou faça frio
Andam aí a sofrer
Com a vida por um fio
Vão, eles, lutando com brio
P’ra poder sobreviver.

Vivem com o que não têm
Sobrevivem com querer
Em algo melhor eles crêem
Um futuro que não vêem
Morrem sem ninguém saber.

Marco Gago