quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Bom Natal e Feliz Ano Novo

O Opina deseja a todos os seus leitores e colaboradores um fantástico Natal e uma entrada com o pé direito em 2014. Em Janeiro estaremos de volta com mais opinações sobre a cultura que se faz em Portugal e com uma ou duas surpresas. Até lá e bom natal!

Fig 1: Feliz Natal! De preferência perto de uma lareira.

À laia de sugestão deixa-mo-vos algumas localizações (gratuitas) para a passagem de ano 2013/2014 com os respectivos cabeças de cartaz:

- Albufeira: Richie Campbell
- Almada: Projecto BUG
- Beja: Clã
- Coimbra: Anaquim
- Lisboa (casino): Amor Electro
- Lisboa (Terreiro do Paço): Herman José
- Estoril (Casino): Deolinda
- Monte Gordo: Mastiksoul, Dj Ride, David Carreira
- Ponta Delgada: Oceanus, Banda Royal
- Portimão: Dj Deelight

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Cronicas de uma viagem - Caminho de Santiago (parte X)

Cronica 10 – O dia mais comprido


Dia 11 Santiago – Vigo- Porto – Lisboa

O dia de hoje foi o mais comprido e o mais cansativo de toda a viagem. Levantei-me por volta das 8h de quinta-feira e cheguei a Lisboa um pouco antes das 6 da manhã do dia seguinte, sexta-feira. Mas indo por partes, arrisco três: i) a parte da manhã passada em Santiago, ii) a parte da viagem até Vigo e iii) a parte de Vigo ao Porto e do Porto a Lisboa com a chegada a casa.

Primeira parte – Em Santiago

Tomei um belo pequeno-almoço na esplanada do café ao lado da pensão - adoro tomar um bom pequeno-almoço, num sítio bonito, descansada e sem pressas. Deixei a mochila a guardar na pensão e sai ligeira para dar uma volta pela cidade, ir à missa do peregrino que acontece todos os dias na catedral ao meio dia e tratar das questões práticas do regresso a casa (em que transporte, a que horas e a que preço).

Santiago, agora à luz do dia, é uma cidade bonita, enfeitada com muitas flores e muito bem cuidada. Vive do turismo e faz por merecer o agrado de quem a visita. Coexistem centenas de lojas de ‘recuerdos’ vulgares (caríssimos e mais ou menos industrializados e desinteressantes) com lojas tradicionais de artigos muito bons e outras inovadoras de design artístico (e preços ainda mais proibitivos). Também é percetível um movimento artístico e cultural bem enraizado mas com novas abordagens bem interessantes.

Fig 2: Santiago
Viajar de mochila e com um orçamento muito limitado também resolve o problema das lembranças para a família e amigos – comprei o mínimo, umas fitas de Santiago tipo ‘senhor do bom fim’ para algumas pessoas com quem quero partilhar este acontecimento e umas pulseiras mais elaboradas com símbolos antigos para os mais chegados (em quase nada ainda gastei mais do que gostaria).

Um dos momentos mais bonitos que vivi neste passeio turístico por Santiago foi ficar a ouvir um músico de rua que tocava acordéon. Sentei-me num degrau e fiquei parada a ouvir a sua música nuns momentos que me lavaram a alma. Mais perto do meio-dia aproximei-me da catedral. A praça monumental, estava cheia de gente. Gente de todas as maneiras e feitios. Devoção, turismo, curiosidade…e aqueles grupos patéticos de ‘turistas de pacote’ com as inevitáveis guias de bandeirinha – deprimentes!

Entrei na catedral deviam ser umas 11 e meia e, apesar da escala ser enorme, já estava apinhada. Os confessionários em várias línguas estavam a funcionar em pleno. E as ‘relações públicas’ da igreja viam-se ‘em palpos de aranha’ para arrumar as «ovelhas», algumas acabadas de chegar da peregrinação, ainda com as mochilas. Muita gente estaria pelo pitoresco, pelo ritual, pelo espetáculo, outras pela devoção. Algumas pessoas estavam em meditação, outras com expressão de sofrimento, algumas só cansadas e outras atentas. Uns mais respeitosos do que outros. 

Gente do mundo inteiro reunida na Catedral. Que sei eu? Eu própria tinha razões paradoxais para estar ali.
Gostei particularmente das palavras da freira que iniciou a comunicação com o público e resumiu a «coisa» a uma trilogia que me fez sentido e podia ser unificadora, para além de qualquer catecismo: Fé, Esperança e Amor. Depois começou a cantar com uma voz magnífica e não deixa de ser comovente ouvir um coro de 1000 vozes entoando os cânticos. De resto, o ritual da missa é normal. Saí na parte das hóstias.

Não fiz as rotas turísticas de abraçar o santo, nem fui à tumba agradecer – já o tinha feito no altar da natureza quando senti que era a hora e não me fazia sentido voltar a fazê-lo por uma qualquer obrigação folclórica. Mas gostei de participar naquele momento da missa e, de alguma maneira, marcar o fim do Caminho, agradecendo pela possibilidade de o ter feito.

Segui para procurar comer qualquer coisa e acabei por almoçar num restaurante muito bonito perto da pensão. Ofereci-me uma refeição completa porque também já não me fazia sentido continuar a comer aquelas sandes, com sumos e fruta que tinham constituído as minhas refeições durante o caminho. Fui buscar a mochila e segui em direção à estação de comboios que ficava relativamente perto (entretanto, tinha decidido voltar de comboio porque é o transporte de que gosto mais e ficava a um preço razoável).

Cheguei à estação um pouco antes das 2h da tarde e apanhei um susto porque só vi destinos espanhóis. Será que não havia comboios para Portugal? Fui às informações e lá soube que teria que fazer o circuito Vigo-Porto-Lisboa. Comprei bilhete e esperei pela partida às 16.29h. Os intervalos de espera neste dia foram desesperantes mas estas primeiras duas horas até serviram para descansar. Apesar da sensação um pouco amarga de que tinha acabado a ‘festa’.

Segunda parte – Rewind do Caminho (viagem de comboio entre Santiago e Vigo)

O troço entre Santiago de Compostela e Vigo faz-se com conforto, num comboio do tipo TGV e dura 1h e meia. O trajeto é quase paralelo ao Caminho e deu-me uma estranha sensação de estar a rebobinar a cassete do que tinha vivido naqueles dias. Parecia que tinha entrado num túnel do tempo e que estava em ‘rewind’ a olhar para aqueles locais (a casa que parecia um castelinho, a igreja de Esclavitud, a casa de Rosália de Castro, aquele bosque, os campos de milho, a estação de Padrón…). Foi quase doloroso. Às páginas tantas, deixei de olhar pela janela porque não gostei da sensação e concentrei-me nas recordações ainda frescas que trazia do Caminho. Gostei de o fazer. Gostei de o ter acabado. Gostei de ter gerido bem o esforço e de ter feito as pazes com o meu corpo que se portou tão bem e de quem eu nem sempre cuido como devia. Gostei de ter passado férias sozinha e de ter percebido que sou boa companhia. Gostei de me ter atrevido a fazer algo diferente e que adiava há muito.

Gostei do ambiente acolhedor do Caminho, da gentileza entre os peregrinos e das palavras de ânimo e incentivo que ouvi por todo o lado. Pensei em muita coisa mas nem tudo consigo alinhar agora. Sinto que as ‘ondas de choque’ desta caminhada vão ecoar me mim por muito tempo e que provavelmente daqui para a frente vão haver coisas que ganharão novos sentidos. Embora não tenha a sensação que algumas pessoas descrevem de que ter feito o caminho lhes mudou a vida. É verdade que fiz o Caminho como uma metáfora da vida e acho que fico com a responsabilidade de não esquecer e prolongar «este espírito peregrino» pelo resto dos meus dias, esteja onde estiver. 

A estação de Vigo é feia. Fica numa zona industrial e inóspita. Felizmente está sol. O intervalo entre comboios é de quase duas horas, muito tempo de espera mas pouco tempo para dar um passeio pela cidade, sobretudo quando se tem uma mochila às costas. Leio uma revista que comprei, escrevo umas notas soltas, vou pedir para carregar o telemóvel no café da estação (tem a bateria viciada e descarrega com facilidade, sobretudo depois de o usar para tirar umas fotos) e fico a ver TV enquanto espero. Nestes locais, a televisão ocupa um lugar estupidamente central. 

Lá, como cá, notícias da crise, manifestações de descontentamento, empobrecimento progressivo das populações, cortes nas reformas, dramas pessoais – uma mãe com 6 filhos que se suicidou aparentemente por dificuldades financeiras. Estas notícias fazem disparar ‘o meu botão’ de Assistente Social entalado entre um compromisso com o desenvolvimento das pessoas, uma empatia terapêutica, uma postura de ajuda à realização do potencial de cada um e o lado do compromisso social com um modelo de sociedade mais justa e mais respeitosa dos direitos humanos. Que não pode ser esta sociedade neoliberal e capitalista em que estamos agora.

Revolta ou transição pacífica? Conformidade ou dissidência? Adaptação ou reinvenção? Estas são algumas das dualidades que ainda não consigo ultrapassar.

Terceira parte – De volta a casa (viagem de comboio entre Vigo, Porto e Lisboa)

Fiz esta viagem entre as oito da tarde com saída de Vigo já num velho comboio português, as 21.00, hora a que cheguei à estação de Campanhã (Primeiro ainda pensei dormir a noite no Porto mas fiz contas à vida e achei que era pouco tempo para o dinheiro que iria gastar; por isso decidi seguir viagem até Lisboa), a longa espera de quase 5h em Campanhã e o regresso a Lisboa num comboio velho e tremeliquento.

A viagem de Vigo ao Porto ainda foi simpática. Tinha ao meu lado uma família com crianças que se fartaram de conversar e fazer jogos – de vez em quando não podia deixar de sorrir com a traquinice das meninas. E uma hora passa num instante. Pude apreciar um belo pôr-do-sol e o nascimento de uma enorme lua cheia que coincidiram com a passagem do rio Minho. Depois, de Valença ao Porto passei por terras e terrinhas com nomes inusitados que não conhecia mas já era noite e acabei por desligar da paisagem e ficar a ler a minha revista.

Chegada a Campanhã aguardava-me a pior espera do caminho: cinco longas horas. Fiz de tudo, comi, andei de um lado para o outro, fui à casa de banho, fumei uns cigarritos, li as revistas, fiz palavras cruzadas, olhei as pessoas, ouvi as conversas e …desesperei. Quem me conhece sabe que eu tenho hora de Cinderela, à meia-noite começo a transformar-me numa abóbora – e foi isso que aconteceu, travei uma luta enorme com o sono e isso cansou-me muito.

Fig 3: Ferrovia, Porto
Só o bom vernáculo nortenho que se ouvia por todo o lado (nas conversas dos taxistas parados em frente da estação, na boca de uma rapariga tipo ‘top model de discoteca de alterne para bimbos endinheirados’, na conversa de um senhor de meia-idade que veio largar uma pré adolescente à estação, nas conversas de 3 jovens amigos com ar de estudantes universitários que jogavam com os seus portáteis…) ajudou-me a manter o estado de alerta.

No entanto, entre a uma da manhã e as cinco e meia, que foi o período da viagem até Lisboa, já estava em estado vegetativo. O comboio seguiu com pouca gente mas foram subindo bastantes pessoas pelo caminho, sobretudo homens jovens que aproveitavam os três bancos em linha e sem apoio de braços para se deitarem. Eu não me atrevi. Doíam-me as pernas da imobilidade. Ainda me descalcei durante um período. Dormitei mas em modo alerta. Comecei a achar que não cheirava muito bem (devia ser da roupa porque tomei banho). Tive frio. Finalmente Lisboa. 

Fig 4: Lisboa
A S. tinha insistido em vir-me buscar, se bem que eu lhe tenha dito que não valia a pena, que poderia apanhar um táxi até Sete Rios onde tinha deixado o carro. Na chegada a Sta. Apolónia estava um delicioso cheiro a bolos quentes no ar, apesar de não haver nenhum café aberto. Da S., nem sombra (tinha adormecido e vinha a caminho). E pronto, lá estava eu, sentada nas escadas da estação de Sta. Apolónia com mochila às costas, ar de sem abrigo e meia bêbada de sono. A cidade estava naquela transição entre as criaturas da noite e a alvorada, que trazia novas criaturas para habitar o dia. 

Chegou a minha boleia e fomos comer qualquer coisa quente em Santos e meter a conversa em dia. Mas eu estava exausta e sou fraca contadora de histórias. Preciso de dormir. Preciso de recuperar desta direta. Preciso de processar lentamente esta viagem…

Isabel Passarinho

domingo, 15 de dezembro de 2013

1000 visualizações!

O Opina atingiu o marco das 1000 visualizações no passado dia 11 de Dezembro!

A todos os nossos leitores, aos autores e aos que continuam a criar e a divulgar cultura um muito obrigado!

Continuem a opinar connosco!


quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Cronicas de uma viagem - Caminho de Santiago (parte IX)

Cronica 9 – O meu caminho e o caminho dos outros

Dia 10 –Padron/Santiago

Manhã fresca. Dormi bem e acordei cheia de energia. Quando fui tomar o pequeno-almoço na sala comum do albergue encontrei o gnomo. Deu-me um sonoro ‘bom dia!’, informou que depois de Santiago seguiria para Finisterra por uma jornada de mais dois ou três dias. Pediu para tirar uma foto comigo. Perguntei-lhe sobre os albergues até Santiago e ele mostrou-se conhecedor e preciso, sugerindo um que ficava a cerca de 4km da cidade e um seminário em Santiago – despediu-se desejando Bom caminõ!

Partilhei o meu pequeno-almoço com as duas jovens de leste (as mesmas que ontem se despediam com muita nostalgia de um belo moço português) – despedi-me delas desejando Bom caminõ! Depois, quando saí, ainda de noite cerrada, outros peregrinos partilharam comigo a luz das lanternas para iluminar o caminho até amanhecer. Quando começou a clarear o dia aceleraram o passo (ou eu desacelerei) e desejaram Bom caminõ!

A primeira paragem foi feita após 6 Km num café em Esclavitud (que raio de nome para uma terra) onde já estavam vários peregrinos. Entrei com a Sílvia, de Madrid, que tinha encontrado um pouco antes e que me disse que estava aflita com bolhas nos pés. Encontrei também as 3 fininhas de leste (afinal eram da Estónia) que comem como ursos e que já estavam no café; vieram pedir para tirar fotos connosco porque queriam ficar com uma recordação. Estive um pouco à conversa com a Sílvia que me disse que não sabia se conseguia chegar a pé a Santiago mas ia voltar para Madrid de avião porque a Ibéria tinha um desconto significativo para peregrinos e bastava apresentar a credencial. Nesta altura ainda não tinha decidido como voltaria para casa e fiquei a pensar na possibilidade de voltar de avião, mas não me preocupei muito, de avião, de autocarro ou de comboio, logo veria. Na saída do café retardei o passo para acompanhar a espanhola até entrar na imponente igreja de Esclavitud. 

[Não tenho ligado muito aos carimbos da caderneta de peregrino e só ali é que percebi que os peregrinos também vão carimbar nas igrejas. Até ali carimbei apenas nos albergues, em alguns cafés de que gostei mais e ontem fui carimbada por uma brigada da proteção civil que encontrei pelo caminho]

Depois de sairmos da igreja deixei-me ficar a acompanhar a Sílvia que andava a muito custo. Mas ela própria me pediu para seguir ao meu passo reforçando o que se diz por aqui, que ‘cada um faz o seu caminho’. Apesar de me fazer sentido é uma postura nova para mim e fico a pensar no meu caminho e no caminho de outros. Tenho ainda aquela coisa entranhada de «ajudar». Mas, bem vistas as coisas, cada um faz mesmo o seu caminho. Embora isso não seja entendido como um ato individualista ou egoísta, é um caminho em interação, só que realmente é de cada um, é a metáfora da vida de cada um – no meu caso não gostaria que alguém traçasse o caminho para mim, abdicasse do seu caminho para fazer o meu (ou me pedisse o inverso) ou me dissesse em que passo o deveria fazer.

Pelo caminho paro muito. Sempre que me sinto cansada e encontro um lugar simpático, paro. Quando me apetece petisco qualquer coisa (normalmente fruta fresca ou seca) ou escrevo. Em algumas paragens descalço-me, tiro as meias, ponho creme nos pés e deixo-os arejar. Depois ponho meias lavadas, volto a calçar-me e aguento mais um troço.[Estes pequenos cuidados, muito creme hidratante e a alternância entre dois pares de calçado têm sido as técnicas usadas para evitar ter bolhas nos pés e até agora tem resultado a 100%]

Fig 2: A caminho de Santiago de Compostela
Quando iniciei esta etapa pensei ficar no albergue que o gnomo me tinha indicado a cerca de 4Km de Santiago e chegar à cidade amanhã, mais fresca e descansada. Mas fui andando, andando e começando a ficar muito cansada, ligo o piloto automático e deixo de raciocinar. Vi algumas indicações de albergues pelo caminho mas como implicavam desvios, não liguei e foi prosseguindo. São 24 Km nesta etapa, num percurso nem sempre fácil e com várias subidas acentuadas, em especial na aproximação à cidade de Santiago.

Passei Milladoiro, a primeira localidade verdadeiramente suburbana que encontrei, sem graça, cinzenta, com os arruamentos em obras, com grandes aglomerados- dormitório, espaços comerciais, um polidesportivo, um grande infantário modernaço (com movimento de saída de crianças a chorar como leitões para a matança, arrastadas por mães gordas e sem paciência  - o eco daqueles choros ficaram-me na cabeça durante muito tempo). Pouco depois desta localidade, avista-se Santiago.

O momento foi partilhado, por acaso (suponho eu) com as fininhas da Estónia que gritaram, bateram palmas e tiraram fotografias. Mas depois do avistamento onde a cidade aparece relativamente perto, o caminho dá voltas e mais voltas num trajeto sinuoso até chegar finalmente ao centro da cidade.

É particularmente difícil a subida para a cidade, por estradas e depois, por ruas que parecem não ter fim. Fiquei com a sensação de que a entrada se faz pelo lado de trás da cidade porque não se vê a catedral, nem o centro histórico. Ao mesmo tempo soma-se o desconforto de entrar numa cidade a meio da tarde, suada, cansada, cheia de pó e, provavelmente, a cheirar mal. Quando perdi as setas amarelas estava numa praça e não sabia que direção tomar. Na dúvida e muito cansada, sentei-me numa esplanada e pedi o de sempre: dois sumos de melocoton e um café solo.

Fig 3: Santiago de Compostela
Aproveitei o descanso para olhar em volta. O café com ar de bistrô francês chama-se Rosália Castro, a escritora venerada por aqui (passei ao lado da sua casa-museu em Padrón). Foquei-me nas pessoas que passavam: bem vestidas, apressadas, muitas com cara fechada e com olhar ausente, como se fossem máquinas. 

Estranhei. Durante o caminho tinha-me habituado a ver a maioria das pessoas de caras abertas que saudavam à passagem, esboçavam sorrisos e desejavam ‘bom caminho’. Quase me esqueci que a vida era assim, cheia de dormências e de defesas para nos entreter o tempo de vida em jogos de ‘papeis’ que não nos fazem felizes. Corridas e aparências para lado nenhum. Na verdade «eu sou mais campo» (como aquela private joke que diz ‘eu sou mais bolos») e preciso de ir procurando alguns sentidos para a vida. Claro que, quando estou do outro lado, ou seja, disfarçada de citadina, também devo ter o mesmo ar ausente e alheado. O tempo ficou enevoado e começou a cair uma chuva miudinha.

Perguntei ao jovem empregado de mesa pela Catedral e pelo Seminário Menor, o albergue de que o gnomo me falara, mas não me fiz entender e ele respondeu qualquer coisa, que eu também não entendi. Quando a chuva parou e eu me senti mais restabelecida pus-me a caminho. Á toa porque não voltei a ver as setas, segui a intuição (ou lá o que seja) e fui dar com o Campus Universitário. É curioso não achar a catedral numa cidade como esta e achar a universidade – dá que pensar. Talvez porque a relação com o conhecimento tem maior peso na minha vida do que a espiritualidade ou talvez por acaso. Sei lá.

Passei num parque urbano com a sensação de que estava a dar uma volta redonda. Perguntei pela catedral a uma senhora e ela deu-me a indicação. Estava perto. Mais uns minutos e avistei-a – imponente. Impossível de passar despercebida. Afinal tinha dado uma volta, por fora, ao centro histórico e não encontrei a tradicional entrada do caminho português, a Porta Faxeira. Agora que estava localizada, era preciso pensar em alojamento. O cansaço não permite grandes buscas e opto por uma pensão que me parece com bom ar numa envolvente simpática (31.00€ pela noite é um preço possível).
Fig 4: Catedral de Santiago
Quase ao pé fica o Instituto profissional de S. Clemente, numas instalações conventuais recuperadas e pelos jovens que circulam nas imediações, deduzo que deve ser uma escola profissional de segunda oportunidade para jovens com percursos mais difíceis. Penso no meu filho G. e na sua relação desastrada (ou desastrosa) com a educação e nas coincidências do que me surge no caminho – tenho a certeza de que, apesar do traçado do Caminho Português ser só um, o caminho tem desafios diferentes consoante as pessoas e cada peregrino fará as suas próprias associações e interpretações.

Depois de um bom banho e muito creme, deitei-me e adormeci. Acordei pelas cinco horas da tarde e obriguei-me a ir à rua (se tivesse feito a vontade ao corpo teria ficado a dormir). Começava a ficar escuro e chuviscava. As ruas do centro histórico estavam repletas de gente e muito animadas. Atuações musicais, esplanadas cheias, gente de todo o mundo nesta cidade que é património da humanidade e que faz por merecer a distinção, está cuidada, investida, preparada para receber os visitantes. Fui à majestosa praça da catedral, entrei na catedral e sai num registo de instantâneo fotográfico. Não ia com uma intenção precisa, estava apenas a dar uma volta de reconhecimento porque já não me lembrava da cidade e … encontrei o gnomo. Perguntou-me se estava sozinha e se queria ir tomar algo com ele. Concordei e fomos andando por aquelas ruas e conversando.

O gnomo é um expert (diz que faz o caminho à 12 anos, que não liga à igreja e que é sobretudo para treinar as pernas, para gerir o stress e para conhecer pessoas de todo o mundo) e aconselhou-me logo a ir aos Serviços do Peregrino (habitualmente com filas de várias horas) carimbar o passaporte e buscar a ‘Compostela’ – uma espécie de certificado da viagem. Aproveitei o guia e lá fui carimbar o Passaporte (é recomendado que seja carimbado em todas as paragens do caminho) e receber a Compostela -passada apenas aos peregrinos que tenham feito pelo menos 100 km a andar ou 200 Km de bicicleta ou a cavalo.

Depois escolhemos uma esplanada numa artéria animada ao lado de um teatro e pedimos 2 copos de vinho para fazer uma saúde – ele escolheu um Rioja muito agradável e nada caro (pagámos apenas €2,00 cada um por um copo de balão bem fornecido). Brindámos ao caminho e à vida, com o inevitável desejo de saúde para nós e para «os nossos».

O gnomo gosta de falar: é um homem rústico, vive numa vila de montanha lá para os lados de Alicante, numa terra cujo nome não fixei, que tem 2000 habitantes e onde toda a gente se conhece. Planta a sua horta e, pelo que percebi, está reformado. Vai prosseguir o caminho até Finisterra e de lá vai a Vigo ver um jogo de futebol – conta que uma das estrelas da equipa é um jovem seu conterrâneo que lhe ofereceu o bilhete para o jogo e que faz muito gosto, sobretudo porque gosta do rapaz e enaltece-lhe as qualidades de não ficar envaidecido com o sucesso e ajudar a família.

Este foi um dos encontros improváveis que o caminho proporciona - não gosto de fazer perguntas sobre a vida dos outros nem de falar de mim, por isso depois de trocarmos umas generalidades, a conversa esgotou-se. Começou a chover com maior intensidade e despedimo-nos com votos sinceros de continuação de bom caminho. Cada um seguiu em direções opostas.

São 21h. Estou no quarto de uma simpática pensão em Santiago de Compostela e antes de dormir penso nesta aventura e no quanto ter feito o caminho me iluminou as ideias? Ou as deixou mais claras? Ou ajudou a tomar decisões? O que é que eu ganhei com esta viagem? Hoje está claro que o meu projeto, qualquer que ele seja, tem de ter raízes em contexto rural e que os velhos e os deficientes estão no meu caminho… mas isto eu já sabia. Pronto, não vou tirar mais ilações… Estou cheia de sono.

Isabel Passarinho

(continua...)

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Cronicas de uma viagem - Caminho de Santiago (parte VIII)

Cronica 8 – Agradecer

Dia 9 – Caldas dos Reis/Padron

Ontem temi a chuva mas a madrugada estava bonita e até aqui foi uma festa para os sentidos, caminhar por bosques, ao lado de rios de leitos suaves, com vegetação tenra e frondosa, a ver a luz da alvorada nos prados numa sucessão de pequenos lugares: Lavandeira, Rego dos Fornos, Santa Marina de Carracedo, Gorgillon, Casalderrique. Já fiz uns bons quilómetros. São 9h em Portugal e 10h em Espanha. 

Parei um pouco retirada do Caminho para fazer uma necessidade fisiológica e na volta, aproveitei para fumar um cigarro e escrever um pouco. Depois passei para a estrada nacional e perdi-me das setas, mais uma vez. Quando achei que já era caminho a mais em estrada, entrei num café e a senhora deu-me indicações para voltar ao caminho que passava quase ao lado. [Se me lembrar das vezes em que me perdi associo sempre a estes malditos troços de estrada nacional. Circular a pé por esta estrada faz parecer que os carros viajam em teletransporte dando uma noção de velocidade completamente diferente da que se tem ao volante de um carro].

Confiro o restante itinerário do caminho que passa duas serras altas e três rios (Bermana, Valga e Vila): Casal de Eirigo, Pino, San Miguel de Valga, Fontelo, Condile, Infesta, Herbon, Pontecesures e Padron. Acabei de descer uma das serras, passando sempre por dentro de bosques frondosos e cheios de sombra, com árvores seculares - o percurso era tão intensamente belo que me comoveu e senti-me verdadeiramente agradecida: à vida que me permite ter esta experiência, ao planeta, aos homens que ainda não estragaram tudo, aos romanos que fizeram esta estrada e a todos os que têm preservado este caminho. Agradeci também a todos que tenho encontrado, peregrinos e habitantes locais, pelo ânimo, pelo incentivo e pelo espírito positivo que me permitiu confiar na minha capacidade de fazer o caminho.

Este sentimento de gratidão é algo que eu aprendi a reconhecer e que se manifesta sobretudo na contemplação de espaços naturais. Não é nada religioso, pensado ou planeado. É apenas um sentimento que se instala e me faz agradecer. Cheguei ao albergue por volta das 13h espanholas. Está muito bem equipado e fica num edifico antigo, recuperado a preceito e situado ao lado de uma Igreja imponente (Igreja del Carmen) e de um convento.

Fig 2: Padron
Fiz as rotinas do costume e fui dar uma volta pela vila – outra terra bonita, com um troço de rio reto que a atravessa e uma zona histórica bem preservada. A minha intenção era compensar-me do esforço da caminhada comendo um Kebab com batatas fritas numa esplanada que tinha visto ao chegar, mas o estabelecimento estava fechado e só reabria às 18h. Fui passear sem grande vontade. Muito comércio estava fechado pelo horário de sesta mas também se notavam os sinais da crise, como por cá. Sem disposição, passei por um supermercado para abastecimento. 

Regressei ao albergue e comi sozinha, uma tortilha e fruta. Depois voltei a sair. Também não me apetece dormir.
Arrasto-me de sítio para sítio, do sol para a sombra, da sombra para o sol mas não estou bem em lugar nenhum. Estou inquieta. Desde ontem à noite que tenho a cabeça cheia de aborrecimentos pessoais, que chegaram pelo telefone. Deixei para trás alguns problemas familiares e outros, coloquei-os entre aspas na esperança de que encontre formas novas de lidar com eles ou que deixem de me importar.

Quando eram 6 e tal da tarde rumei ao kebab mas em terra de marisco foi uma opção menor. Soube-me bem, estava bom, ainda conversei com o gnomo que passou na esplanada mas quando cheguei ao albergue, o cheiro que vinha da cozinha era muito tentador: dois portugueses jovens fizeram arroz de marisco e as 3 mulheres magríssimas de leste tinham um verdadeiro banquete, com uma cataplana de mariscos, uma salada e muitas frutas. É nestas alturas que eu lamento ser «bicho-do-mato» e ganhar peso com facilidade. A primeira característica impediu-me de meter conversa com os conterrâneos e partilhar o jantar deles e a segunda fez-me olhar com uma certa inveja para aquelas 3 almas de leste estão sempre a comer e são escandalosamente magras. Não me parece nada justo!

Fui assistir à missa na tal igreja monumental que ficava ao lado do albergue. Meio por acaso. Estava a apreciar a vista fantástica do átrio frontal quando percebi que a porta estava aberta. Entrei, apreciei a igreja e acabei por ficar na missa. Estavam poucas pessoas e algumas eram peregrinas. O padre era velhote e eu não percebia tudo o que ele dizia. Aproveitei o ambiente e pensei em mim, na vida e nos outros que me povoam os afetos. Acabou por ser um momento de meditação e paz interior que me soube muito bem.  Na saída, olho para o cruzeiro ao pé do albergue com uma virgem e um menino (as cruzes dos cruzeiros no Caminho estão cheias de figuras de pedra) e penso na maternidade, essa condição simultaneamente fabulosa e ‘incurável’ que nos faz passar pelas maiores alegrias e também por dores muito profundas…e penso também em como seria bom se existissem milagres. Vou dormir.
Fig 3: Albergue de Padrón
Antes de adormecer ainda ouço algumas despedidas entre peregrinos mais jovens que se conheceram no Caminho. E sinto a nostalgia de estar quase a terminar – amanhã será a última etapa. Mas não me sinto capaz de balanços.

Isabel Passarinho

(continua...)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Cronicas de uma viagem - Caminho de Santiago (parte VII)

Cronica 7 – A pé é tudo muito longe

Dia 8 – Barro/Caldas dos Reis

Fiz uma etapa de aproximadamente 14 Km até Caldas dos Reis, num percurso por San Mauro, Rio Agra e Briallos. A estrada romana segue pelo meio dos campos, quase sempre em trajetos planos – o que também tem um efeito restabelecedor (…ainda acuso o desgaste da etapa de ontem nos pés e na anca). 


Este traçado silvestre, alterna depois com a passagem por muitas aldeias e pelas suas zonas circundantes com os campos mais cultivados, alternando com zonas florestadas. Dormi bem – o tempo refrescou e a camarata tinha menos pessoas, o que também favoreceu a noite retemperadora. A cereja em cima do bolo foi haver pequeno-almoço; o inesperado ‘presente’ soube mesmo muito bem e acabei por deixar registado o meu agrado no livro do albergue.
Fig 2: Caldas de Reis
Na primeira parte do caminho não se vê vivalma, nem peregrinos, nem locais nem um café. Omnipresentes só os corvos/gralhas com o seu piar um pouco lúgubre… Provavelmente a maior parte dos peregrinos ficou em Pontevedra o que me deu um avanço de aproximadamente 10Km. Já a manhã ia bem adiantada quando passaram por mim os primeiros peregrinos ‘conhecidos’, o homem com ar de segurança e a mulher mais velha, os 3 homens língua-de-trapos que me ajeitaram a vieira, o companheiro gnomo da Alice de Málaga sem ela e dois jovens que me pareceram do leste europeu… [Eram lindos de morrer, umas verdadeiras obras da arte. Soube mais à frente, quando finalmente encontrei um café onde eles também foram, que um é Arménio e fala italiano e o outro é russo e fala razoavelmente bem o espanhol]

Diverti-me com o ar espantado com que alguns peregrinos ‘conhecidos’ olhavam para mim nos primeiros encontros, provavelmente surpresos por me encontrarem à frente (normalmente fico para trás porque vou em passo mais lento e descanso muito) e fantasiei que se lembravam da história da lebre e da tartaruga.
Ao mesmo tempo, gostei que esta etapa fosse mais solitária - cruzei –me com pouca gente e os habitantes locais estavam ocupados, sobretudo a trabalhar nos campos, não dando muitas vezes pela minha passagem – o que não mau. Sentia-me desconfortável com a indumentária (as calças da Quetcha não secaram e vesti umas legings pretas, tinha umas botas de cabedal curtas cobertas de pó, uma t-shirt branca comprida, um casaco polar cinzento e uma echarpe lilás – imagine-se esta indumentária numa estrutura baixa e rechonchuda …) e apetecia-me ser invisível [ou transparente, como dizia uma professora deprimida].

A questão do «embrulho» tem a sua importância. Se é verdade que viajar com o mínimo de bagagem obriga a um maior despojamento, também tem sido verdade que às vezes é despojamento a mais. Apesar de estar lavada e de estar numa rota de peregrinos senti-me, em algumas circunstâncias, com ar de pessoa sem-abrigo. Claro que isto são tudo inseguranças e estereótipos; mas pensei muito na importância que se atribui às aparências e à leitura superficial dos outros, nos julgamentos, naquele jeito provinciano de ser … Tenho pensado também nas minhas certezas e nas respostas que arranjo para mim e para explicar os outros; na importância de manter espaço para o espanto, deixando em aberto algumas questões como as que aparentemente surgem como coincidências.

Hoje, tive alguns ‘dejá vu’ com lugares e pessoas: passei por duas pequenas aldeias seguidas com os nomes de S. Sebastião e S. Amaro que me lembraram outras duas com os mesmos nomes em Penela (será que estes dois santos andam sempre de carreirinha?) e por algumas mulheres com uma fisionomia particular (com uma pele muito fina e branca, cabelos loiros escuros ou arruivados bastante lisos e fortes e as estruturas sólidas das mulheres viking) que me lembraram a mãe de uma amiga que foi muito importante na minha adolescência. 
Achei curioso…

Após três horas de caminhada, sem café e sem tabaco, comecei a ressacar. Se tivesse juízo, não voltava a comprar tabaco mas provavelmente não tenho. [Tenho fumado pouco, mas achei que era muito sacrifício eliminar o tabaco, por isso sai de Lisboa com um maço quase cheio e em Valença comprei outro maço, que durou até agora] Estou instalada no albergue em Caldas dos Reis - chama-se D. Urraca e à frente tem uma casa comercial brasileira - não podiam ser referências mais familiares.

O albergue tem o necessário mas está em instalações provisórias e não oferece aquelas boas condições dos edifícios requalificados ainda com ar de novo; mas tem uma excelente localização e uma envolvente magnífica. Caldas dos Reis é uma vila histórica, pequena e bonita (fazendo lembrar Chaves pelas águas termais quentes ou Caldas da Rainha, pelo seu parque verde no meio da cidade).
Fig 3: Caldas de Reis
Conheci no albergue um casal de Boston, os dois muito magros e velhos (talvez na casa dos 70 e muitos anos ou oitenta) mas cheios de energia e boa disposição que consolidaram a minha convicção de que qualquer pessoa pode fazer o caminho, dependendo de como se organiza para o fazer. E também a certeza de que o caminho não se faz com os pés, faz-se com a cabeça, no sentido de que me parece determinante a(s)motivação(ões) e a organização.

O que faz tanta gente tão diferente neste Caminho?

Procuram-se? Fazem penitências? Promessas? Passeiam? Testam-se? Procuram respostas?

Na longa tarde que vai desde a altura em que me instalo no albergue até ir dormir existe tempo para tudo (até para achar difícil passar o tempo): tempo para tomar duche, fazer uma sesta, para lavar e estender roupa, para dar uma volta pela vila, para ficar sentada a apanhar sol nos bancos de pedra ao lado da ponte romana (um cenário lindo) olhando as águas límpidas do rio, para fazer o abastecimento utilitário para hoje e para a viagem de amanhã (privilegiei uma pequena mercearia tradicional), para escrever, para ler, para pensar. [ … não sei se tenho grandes pensamentos neste caminho, ou sequer se deveria tê-los, mas estas novas rotinas favorecem que pense, alternando com os períodos de maior cansaço em que não penso em nada e parece que esvazio a cabeça].

O tempo ameaça chover e está a ficar mais frio, à medida que a tarde avança. Fui para o albergue beber chocolate quente (lembro-me sempre da minha mãe quando bebo chocolate quente), rever a rota de amanhã e ler um bocadinho antes de adormecer. [Os planos de me deitar mais cedo não resultaram em dormir logo porque a minha cama estava alinhada com uma maldita luz florescente e ficava na rota das casas de banho.]

O que é a solidão? Estar sozinha ou sentir que se está sozinha?

Naquela leitura quântica ‘estar sozinha’ é uma impossibilidade técnica dado que todos estamos energeticamente ligados…então, porque é que a solidão mete tanto medo?! Talvez seja sobretudo o medo da perda ou afastamento de quem nos é querido e importante, ou o medo de ficar parada nas perdas, de não seguir viagem… A pé é tudo muito longe mas como diz o poeta ‘o caminho faz-se caminhando…’ Lembro-me das gralhas. Não me sinto nada ‘iluminada’ (deveria estar?) quanto aos meus dilemas, mas tenho retirado muito lixo da cabeça. Espero conseguir chegar ao fim.

Isabel Passarinho

(continua...)

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Cronicas de uma viagem - Caminho de Santiago (parte VI)

Cronica 6 – Sobre erros e voltar atrás

Dia 7 – Redondela/Barro

Esta foi a maior etapa que fiz no Caminho, com cerca de 30 Km. Inicialmente, planeei ir até Pontevedra, sendo o percurso descrito como acidentado e passando pelo Alto da Lomba (5Km), Fonte, Arcade, Alto da Canicouva (12 Km), Rio Tomeza (15 Km) e Pontevedra (18Km). Mas um erro de atenção fez com que eu falhasse o albergue de Pontevedra e estava tão cansada e com tanto calor que não quis voltar para trás e andar 10 minutos até ao albergue. Paradoxalmente, prossegui: fui atravessando a cidade à espera de encontrar uma pensão simpática no caminho e, quando dei conta já estava a sair da cidade. 

Decidi continuar na esperança de que o próximo albergue não ficasse muito longe, mas os 12 Km que fiz a seguir foram bastante sofridos. Nesta etapa, pensei várias vezes em parar e dormir ao relento (nas traseiras de uma igreja, debaixo de uma latada, debaixo da copa de um castanheiro…) mas acabei por não ter coragem de o fazer e, com longos períodos de descanso, lá fui prosseguindo até encontrar o albergue do Barro já no final do dia. Dormi lá a melhor noite do Caminho.

Este engano e, sobretudo a decisão insensata que tomei de seguida, quase me fizeram desistir. Na verdade, quando decidi fazer o Caminho deixei sempre em aberto a possibilidade de, por qualquer boa razão, poder desistir e como não fui em penitência, isso não seria desastroso. Mas desistir não é algo que eu goste de fazer; talvez por isso fui persistindo, persistindo até ao final da etapa – e é assim que muitas vezes conduzo as dificuldades da vida, nem sempre bem mas com alguma resistência em deixar «coisas» a meio e muita dificuldade em «voltar atrás».

Quando sai de Redondela, ainda de noite como de costume, apanhei bastantes troços de estrada com grande espaçamento entre setas, o que me dava aquele frio na barriga de pensar que podia estar enganada. Os primeiros peregrinos que encontrei (o casal com a mulher mais velha e o homem com ar de segurança) voltavam atrás porque também pensavam que se tinham enganado mas ali eu estava segura (tinha visto uma seta à pouco) e pude assegurar-lhes que estavam bem. Deram meia volta e prosseguiram à minha frente, com um passo muito mais rápido do que o meu, pelo que depressa deixei de os ver.

Esta etapa tem troços florestados muito bonitos e belas vistas panorâmicas sobre o mar (que aqui parece um lago ou albufeira). Numa destas vistas, a Alicia de Málaga pediu para tirar uma fotografia a si e ao seu companheiro de viagem, um homem pequenino com ar de gnomo simpático. Depois, pediu para eu tirar uma fotografia com eles os dois para recordação – achei estranho mas consenti e acabei por também eu pedir para o gnomo me tirar uma foto com a Alicia. Estranho estes momentos, questionando-me sobre o que pensarão as pessoas (será que também me atribuem personagens?) e o que as levará a meterem conversa comigo; apesar de eu dificilmente tomar a iniciativa de conversar com alguém, estes momentos ajudam a descontrair.

Noutra paragem, passou o Hans Joaquim e conversámos um pouco antes de ele se pôr a caminho de novo (não o veria mais); ainda fiquei a comer alperces secos e nozes. De seguida pararam ao pé de mim 2 portugueses de Águeda, que vinham a pé desde casa, fizeram 40Km/dia nas duas primeiras etapas e diziam ter os pés cheios de bolhas. «Mas as bolhas são para pisar, não é?», dizia o mais novo com ar um pouco abrutalhado, quando ambos seguiram caminho em boa velocidade. Achei-os bastante lunáticos…mas cada um sabe de si.

De qualquer forma eu hoje ando a passo de caracol e tenho a sensação que todos os peregrinos passam por mim. Até os passeantes de domingo – sim, porque neste troço vi muitas pessoas que deviam ser habitantes locais a fazer a sua caminhada de domingo. Um destes passeantes (acompanhado de uma senhora) depois de desejar bom caminho, como todos faziam, perguntou de onde eu era; quando disse que era de Lisboa, o sorriso abriu-se e disse que tinha estado 4 anos em Portugal e tinha gostado muito. Seguiram, muito mais ligeiros do que eu, deixando-me com aquela ideia de que os estrangeiros apreciam mais Portugal do que os próprios portugueses.

Parei a 1km de Pontevedra num café/tasca regional para a ração do costume: água, dois sumos de fruta e um café – esta é outra constância do caminho. Falhei o albergue de Pontevedra. Vi o sinal, mas fiquei na dúvida se deveria seguir ou virar à direita. Optei por prosseguir, seguindo os 3 homens «língua-de-trapos» que me ajudaram a ajeitar a vieira na mochila quando a comprei.

[Apenas em Arcade, localidade conhecida pela sua ponte medieval, encontrei os habitantes a vender vieiras aos peregrinos, provavelmente aproveitando o recurso que o mar-lago lhes deposita à porta. Comprei a minha por 2 € a uma jovem e simpática senhora marroquina que tinha duas crianças pequenas a espreitar pela porta entreaberta]
Fig 2: Pontevedra
Andando pelo meio da cidade mais 10 minutos sob um sol escaldante encontrei uma peregrina espanhola com quem já me tinha cruzado e perguntei-lhe pelo albergue; ela confirmou que teria de voltar para trás. Era uma da tarde, estava um calor incrível e decido seguir em frente, até porque é domingo e não me apetece ver monumentos nem passear sozinha. No atravessamento da cidade percebo que é bonita, que tem um centro histórico muito antigo e bem preservado mas saí pela Ponte do Burgo tão depressa quanto pude.

Parei de novo à sombra de um bosque. Descalcei-me e inspecionei os pés: será que aguentam? Qual a distância que terei que fazer até outro albergue? 12 Km para Barro? Apetece-me desistir. Em Pontevedra passei no terminal rodoviário e apeteceu-me apanhar o primeiro autocarro para casa. Hoje andei todo o dia a perguntar-me porque é que estou a fazer isto? Porquê e para quê? Não posso negar que tem o seu quê de ‘sacrifico’ mesmo que eu não lhe atribua penitência nenhuma. Mas para quê? 

Passam muitas ideias na minha cabeça, entre elas a ideia de «esticar a máquina», como os carros velhos que de vez em quando precisam de andar a mais velocidade. Mas não é só isso. Também não é aquela coisa dos pecados, das promessas e da salvação, para as quais não tenho paciência nem convicção. Como é que me meti nestes ‘trabalhos’?

Lembro-me que a propósito de outras caminhadas (nomeadamente os percursos formativos mais longos e mais próximos da Terapia Familiar ou do Doutoramento) também me questionei assim. Às tantas parece que tenho que provar algo – o quê? A quem?

Será que preciso de me lembrar do que ainda sou capaz?

Será que preciso de segurança para seguir com o meu projeto? Qual é o meu projeto?

Talvez seja isso, talvez a decisão de fazer este caminho seja a forma que encontrei para me dar tempo de descobrir o que quero fazer da vida que me resta?

A verdade é que eu estou numa fase em que tenho o passado mais ou menos ‘resolvido’, tenho o presente tão ‘arrumado’ quanto pode estar nestes tempos de incertezas e não tenho projetos para o futuro. No meio de muita coisa que «era gira», que «podia ser», simplesmente não é, não sei ao que me proponho, não sei para onde vou, não sei se ainda quero algo. Talvez fazer o caminho signifique procurar sentidos e significados para o que ainda quero da vida.

Já acabei a água no cantil e as fontes por onde tenho passado não são seguras. Perdi a noção das distâncias e já não sinto nada, pareço um autómato. Só me vem à cabeça o disparate de não ter ficado em Pontevedra…

O caminho é quase plano, à beira rio e bastante sombreado. Tem passado poucos peregrinos a pé, mas alguns de bicicleta e outros a cavalo. Vou parando amiúde, mas não tenho coragem de pedir água a quem passa, nem sequer pedir informação sobre a distância do próximo albergue. Tenho um aperto no peito.
Penso em como estarão os meus filhos e algumas pessoas que me são próximas. [São 8 da noite em Portugal e 9 em Espanha. Já estou no albergue do Barro de banho tomado e roupa lavada, está fresco e é quase noite. Cá fora estão outras pessoas à conversa, sentadas em cadeiras de jardim; fui para uma mesa sozinha para escrever]

Estava eu, em desespero, sem me achar capaz de fazer o resto do caminho quando passa um jovem e percebo pelo sotaque do «bom caminho» que é português. Saudamo-nos e começamos a falar, vai de regresso de Santiago e eu pergunto-lhe se falta muito para uma aldeia ou para um albergue. Diz-me que não, que no fim da subida existe uma aldeia e que o albergue é um pouco mais à frente.

Ganho ânimo e faço-me ao caminho. No cimo da subida, ainda antes da aldeia encontro um casal de velhotes em passeio de fim de tarde, perguntam-me de onde venho? Sozinha? Dizem-me que o caminho é muito duro e que é bom fazer etapas mais pequenas (agora sei que têm razão). Dizem-me também que na aldeia posso parar, comer uvas e dormir, se quiser. Despeço-me deles com o coração aquecido porque me pareceram pessoas boas.
Fig 3: Rio Barosa, Barro
Na entrada da aldeia, paro num café com ‘hostel’ privado. O café tem uma esplanada coberta por uma latada linda e eu fico por ali a beber o sumo e o café da praxe. Servem-me ‘Compal’ e eu, alegre e surpresa, pergunto como é que fizeram esta opção? A senhora diz-me que o vendedor apareceu e que gostaram muito do sumo, que é melhor do que as marcas espanholas. Concordo e bebo dois. Peço indicações sobre o albergue e a senhora diz que é perto, apenas um km. Realmente, as distâncias são muito relativas, o que é 1Km para quem já andou 29? Retomo caminho e abasteço o cantil numa fonte que a senhora do café indicou.

Um quilómetro e 400 metros depois chego ao albergue. Ao chegar, a primeira impressão foi a de que estava a chegar a uma comunidade terapêutica. Não sei se foi por ser recebida por 2 homens com ar hippie e com cigarros apagados na mão… ou se estou a ser preconceituosa. Fui recebida na sala, onde estavam outros 2 homens, um fazia sumos naturais e outro ajeitava os legumes frescos que estavam para venda, alinhados em caixas numa das paredes; e tudo era normal, os duches, a camarata (bastante mais pequena), o local de lavar e secar roupa, a esplanada ajardinada lá fora.

O João e a Barbara, um casal de peregrinos polacos foram as pessoas com quem conversei, sobretudo com ele que era um falador (ou dominava melhor o inglês?). Fugiu ao regime comunista, foi para Itália e de lá para o Canadá onde esteve imigrado uma série de anos. Estão bem de vida, são católicos e fazem o caminho com motivação religiosa. Tem achado o caminho português muito bonito, com terras «gordas», muito férteis e cheio de água «que brota da terra». Diz que na Polónia já sentem muito a falta de água, que é frequentemente racionada em meio urbano e que já tem os lençóis subterrâneos comprometidos. Gostam muito de Portugal. Reparto com eles as últimas nozes que tenho e vou deitar-me. Está uma noite fria.

Isabel Passarinho

(continua...)