terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Cronicas de uma viagem - Caminho de Santiago (parte VIII)

Cronica 8 – Agradecer

Dia 9 – Caldas dos Reis/Padron

Ontem temi a chuva mas a madrugada estava bonita e até aqui foi uma festa para os sentidos, caminhar por bosques, ao lado de rios de leitos suaves, com vegetação tenra e frondosa, a ver a luz da alvorada nos prados numa sucessão de pequenos lugares: Lavandeira, Rego dos Fornos, Santa Marina de Carracedo, Gorgillon, Casalderrique. Já fiz uns bons quilómetros. São 9h em Portugal e 10h em Espanha. 

Parei um pouco retirada do Caminho para fazer uma necessidade fisiológica e na volta, aproveitei para fumar um cigarro e escrever um pouco. Depois passei para a estrada nacional e perdi-me das setas, mais uma vez. Quando achei que já era caminho a mais em estrada, entrei num café e a senhora deu-me indicações para voltar ao caminho que passava quase ao lado. [Se me lembrar das vezes em que me perdi associo sempre a estes malditos troços de estrada nacional. Circular a pé por esta estrada faz parecer que os carros viajam em teletransporte dando uma noção de velocidade completamente diferente da que se tem ao volante de um carro].

Confiro o restante itinerário do caminho que passa duas serras altas e três rios (Bermana, Valga e Vila): Casal de Eirigo, Pino, San Miguel de Valga, Fontelo, Condile, Infesta, Herbon, Pontecesures e Padron. Acabei de descer uma das serras, passando sempre por dentro de bosques frondosos e cheios de sombra, com árvores seculares - o percurso era tão intensamente belo que me comoveu e senti-me verdadeiramente agradecida: à vida que me permite ter esta experiência, ao planeta, aos homens que ainda não estragaram tudo, aos romanos que fizeram esta estrada e a todos os que têm preservado este caminho. Agradeci também a todos que tenho encontrado, peregrinos e habitantes locais, pelo ânimo, pelo incentivo e pelo espírito positivo que me permitiu confiar na minha capacidade de fazer o caminho.

Este sentimento de gratidão é algo que eu aprendi a reconhecer e que se manifesta sobretudo na contemplação de espaços naturais. Não é nada religioso, pensado ou planeado. É apenas um sentimento que se instala e me faz agradecer. Cheguei ao albergue por volta das 13h espanholas. Está muito bem equipado e fica num edifico antigo, recuperado a preceito e situado ao lado de uma Igreja imponente (Igreja del Carmen) e de um convento.

Fig 2: Padron
Fiz as rotinas do costume e fui dar uma volta pela vila – outra terra bonita, com um troço de rio reto que a atravessa e uma zona histórica bem preservada. A minha intenção era compensar-me do esforço da caminhada comendo um Kebab com batatas fritas numa esplanada que tinha visto ao chegar, mas o estabelecimento estava fechado e só reabria às 18h. Fui passear sem grande vontade. Muito comércio estava fechado pelo horário de sesta mas também se notavam os sinais da crise, como por cá. Sem disposição, passei por um supermercado para abastecimento. 

Regressei ao albergue e comi sozinha, uma tortilha e fruta. Depois voltei a sair. Também não me apetece dormir.
Arrasto-me de sítio para sítio, do sol para a sombra, da sombra para o sol mas não estou bem em lugar nenhum. Estou inquieta. Desde ontem à noite que tenho a cabeça cheia de aborrecimentos pessoais, que chegaram pelo telefone. Deixei para trás alguns problemas familiares e outros, coloquei-os entre aspas na esperança de que encontre formas novas de lidar com eles ou que deixem de me importar.

Quando eram 6 e tal da tarde rumei ao kebab mas em terra de marisco foi uma opção menor. Soube-me bem, estava bom, ainda conversei com o gnomo que passou na esplanada mas quando cheguei ao albergue, o cheiro que vinha da cozinha era muito tentador: dois portugueses jovens fizeram arroz de marisco e as 3 mulheres magríssimas de leste tinham um verdadeiro banquete, com uma cataplana de mariscos, uma salada e muitas frutas. É nestas alturas que eu lamento ser «bicho-do-mato» e ganhar peso com facilidade. A primeira característica impediu-me de meter conversa com os conterrâneos e partilhar o jantar deles e a segunda fez-me olhar com uma certa inveja para aquelas 3 almas de leste estão sempre a comer e são escandalosamente magras. Não me parece nada justo!

Fui assistir à missa na tal igreja monumental que ficava ao lado do albergue. Meio por acaso. Estava a apreciar a vista fantástica do átrio frontal quando percebi que a porta estava aberta. Entrei, apreciei a igreja e acabei por ficar na missa. Estavam poucas pessoas e algumas eram peregrinas. O padre era velhote e eu não percebia tudo o que ele dizia. Aproveitei o ambiente e pensei em mim, na vida e nos outros que me povoam os afetos. Acabou por ser um momento de meditação e paz interior que me soube muito bem.  Na saída, olho para o cruzeiro ao pé do albergue com uma virgem e um menino (as cruzes dos cruzeiros no Caminho estão cheias de figuras de pedra) e penso na maternidade, essa condição simultaneamente fabulosa e ‘incurável’ que nos faz passar pelas maiores alegrias e também por dores muito profundas…e penso também em como seria bom se existissem milagres. Vou dormir.
Fig 3: Albergue de Padrón
Antes de adormecer ainda ouço algumas despedidas entre peregrinos mais jovens que se conheceram no Caminho. E sinto a nostalgia de estar quase a terminar – amanhã será a última etapa. Mas não me sinto capaz de balanços.

Isabel Passarinho

(continua...)

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