sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Cronicas de uma viagem - Caminho de Santiago (parte VII)

Cronica 7 – A pé é tudo muito longe

Dia 8 – Barro/Caldas dos Reis

Fiz uma etapa de aproximadamente 14 Km até Caldas dos Reis, num percurso por San Mauro, Rio Agra e Briallos. A estrada romana segue pelo meio dos campos, quase sempre em trajetos planos – o que também tem um efeito restabelecedor (…ainda acuso o desgaste da etapa de ontem nos pés e na anca). 


Este traçado silvestre, alterna depois com a passagem por muitas aldeias e pelas suas zonas circundantes com os campos mais cultivados, alternando com zonas florestadas. Dormi bem – o tempo refrescou e a camarata tinha menos pessoas, o que também favoreceu a noite retemperadora. A cereja em cima do bolo foi haver pequeno-almoço; o inesperado ‘presente’ soube mesmo muito bem e acabei por deixar registado o meu agrado no livro do albergue.
Fig 2: Caldas de Reis
Na primeira parte do caminho não se vê vivalma, nem peregrinos, nem locais nem um café. Omnipresentes só os corvos/gralhas com o seu piar um pouco lúgubre… Provavelmente a maior parte dos peregrinos ficou em Pontevedra o que me deu um avanço de aproximadamente 10Km. Já a manhã ia bem adiantada quando passaram por mim os primeiros peregrinos ‘conhecidos’, o homem com ar de segurança e a mulher mais velha, os 3 homens língua-de-trapos que me ajeitaram a vieira, o companheiro gnomo da Alice de Málaga sem ela e dois jovens que me pareceram do leste europeu… [Eram lindos de morrer, umas verdadeiras obras da arte. Soube mais à frente, quando finalmente encontrei um café onde eles também foram, que um é Arménio e fala italiano e o outro é russo e fala razoavelmente bem o espanhol]

Diverti-me com o ar espantado com que alguns peregrinos ‘conhecidos’ olhavam para mim nos primeiros encontros, provavelmente surpresos por me encontrarem à frente (normalmente fico para trás porque vou em passo mais lento e descanso muito) e fantasiei que se lembravam da história da lebre e da tartaruga.
Ao mesmo tempo, gostei que esta etapa fosse mais solitária - cruzei –me com pouca gente e os habitantes locais estavam ocupados, sobretudo a trabalhar nos campos, não dando muitas vezes pela minha passagem – o que não mau. Sentia-me desconfortável com a indumentária (as calças da Quetcha não secaram e vesti umas legings pretas, tinha umas botas de cabedal curtas cobertas de pó, uma t-shirt branca comprida, um casaco polar cinzento e uma echarpe lilás – imagine-se esta indumentária numa estrutura baixa e rechonchuda …) e apetecia-me ser invisível [ou transparente, como dizia uma professora deprimida].

A questão do «embrulho» tem a sua importância. Se é verdade que viajar com o mínimo de bagagem obriga a um maior despojamento, também tem sido verdade que às vezes é despojamento a mais. Apesar de estar lavada e de estar numa rota de peregrinos senti-me, em algumas circunstâncias, com ar de pessoa sem-abrigo. Claro que isto são tudo inseguranças e estereótipos; mas pensei muito na importância que se atribui às aparências e à leitura superficial dos outros, nos julgamentos, naquele jeito provinciano de ser … Tenho pensado também nas minhas certezas e nas respostas que arranjo para mim e para explicar os outros; na importância de manter espaço para o espanto, deixando em aberto algumas questões como as que aparentemente surgem como coincidências.

Hoje, tive alguns ‘dejá vu’ com lugares e pessoas: passei por duas pequenas aldeias seguidas com os nomes de S. Sebastião e S. Amaro que me lembraram outras duas com os mesmos nomes em Penela (será que estes dois santos andam sempre de carreirinha?) e por algumas mulheres com uma fisionomia particular (com uma pele muito fina e branca, cabelos loiros escuros ou arruivados bastante lisos e fortes e as estruturas sólidas das mulheres viking) que me lembraram a mãe de uma amiga que foi muito importante na minha adolescência. 
Achei curioso…

Após três horas de caminhada, sem café e sem tabaco, comecei a ressacar. Se tivesse juízo, não voltava a comprar tabaco mas provavelmente não tenho. [Tenho fumado pouco, mas achei que era muito sacrifício eliminar o tabaco, por isso sai de Lisboa com um maço quase cheio e em Valença comprei outro maço, que durou até agora] Estou instalada no albergue em Caldas dos Reis - chama-se D. Urraca e à frente tem uma casa comercial brasileira - não podiam ser referências mais familiares.

O albergue tem o necessário mas está em instalações provisórias e não oferece aquelas boas condições dos edifícios requalificados ainda com ar de novo; mas tem uma excelente localização e uma envolvente magnífica. Caldas dos Reis é uma vila histórica, pequena e bonita (fazendo lembrar Chaves pelas águas termais quentes ou Caldas da Rainha, pelo seu parque verde no meio da cidade).
Fig 3: Caldas de Reis
Conheci no albergue um casal de Boston, os dois muito magros e velhos (talvez na casa dos 70 e muitos anos ou oitenta) mas cheios de energia e boa disposição que consolidaram a minha convicção de que qualquer pessoa pode fazer o caminho, dependendo de como se organiza para o fazer. E também a certeza de que o caminho não se faz com os pés, faz-se com a cabeça, no sentido de que me parece determinante a(s)motivação(ões) e a organização.

O que faz tanta gente tão diferente neste Caminho?

Procuram-se? Fazem penitências? Promessas? Passeiam? Testam-se? Procuram respostas?

Na longa tarde que vai desde a altura em que me instalo no albergue até ir dormir existe tempo para tudo (até para achar difícil passar o tempo): tempo para tomar duche, fazer uma sesta, para lavar e estender roupa, para dar uma volta pela vila, para ficar sentada a apanhar sol nos bancos de pedra ao lado da ponte romana (um cenário lindo) olhando as águas límpidas do rio, para fazer o abastecimento utilitário para hoje e para a viagem de amanhã (privilegiei uma pequena mercearia tradicional), para escrever, para ler, para pensar. [ … não sei se tenho grandes pensamentos neste caminho, ou sequer se deveria tê-los, mas estas novas rotinas favorecem que pense, alternando com os períodos de maior cansaço em que não penso em nada e parece que esvazio a cabeça].

O tempo ameaça chover e está a ficar mais frio, à medida que a tarde avança. Fui para o albergue beber chocolate quente (lembro-me sempre da minha mãe quando bebo chocolate quente), rever a rota de amanhã e ler um bocadinho antes de adormecer. [Os planos de me deitar mais cedo não resultaram em dormir logo porque a minha cama estava alinhada com uma maldita luz florescente e ficava na rota das casas de banho.]

O que é a solidão? Estar sozinha ou sentir que se está sozinha?

Naquela leitura quântica ‘estar sozinha’ é uma impossibilidade técnica dado que todos estamos energeticamente ligados…então, porque é que a solidão mete tanto medo?! Talvez seja sobretudo o medo da perda ou afastamento de quem nos é querido e importante, ou o medo de ficar parada nas perdas, de não seguir viagem… A pé é tudo muito longe mas como diz o poeta ‘o caminho faz-se caminhando…’ Lembro-me das gralhas. Não me sinto nada ‘iluminada’ (deveria estar?) quanto aos meus dilemas, mas tenho retirado muito lixo da cabeça. Espero conseguir chegar ao fim.

Isabel Passarinho

(continua...)

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