quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Cronicas de uma viagem - Caminho de Santiago (parte V)

Cronica 5 – Estranhezas e Saudades

Dia 6 – Porrinõ/Redondela

Dormi bem e acordei descansada às 5h, como já vai sendo costume. Hoje é sábado e o tempo está um pouco mais fresco. Antes de sair fui beber uma ‘bica’ no restaurante da pensão e fiquei à conversa com o dono, que era de Granada e bem mais interessante e simpático do que a mulher – eu estava bem-disposta e aquela breve conversa deu-me ânimo. Sai e deixei Porrinõ de noite e sem saudades.

Ao raiar do dia, num troço em estrada nacional perdi-me das setas e quando eu já desconfiava que teria de voltar para trás, um velhote de lambreta passou por mim e ensinou-me como é que podia fazer para retomar o caminho mais à frente; mas para se assegurar que eu não me perdia novamente, passou um viaduto e foi levar-me à estrada certa – foi providencial esta ajuda porque é mesmo muito difícil qualquer orientação em território desconhecido.

Quando fiquei de novo no caminho, comecei a encontrar outros peregrinos: a Alice, de Málaga que caminha sem mochila meteu conversa e diz que hoje vai tomar banho na praia de Redondela (?), uns jovens de leste que vêm em grupo conversam como pardais numa língua desconhecida, o jovem italiano e os seus 2 amigos que me saudaram alegremente, as 3 mulheres de leste (magríssimas, uma loira, outra ruiva e outra morena), o casal espanhol em que ele é bastante mais novo e tem ar de segurança de discoteca e muitos outros. Eu, de vez em quando, dou por mim a falar sozinha com as setas «Ah, estás aí?» … isto promete.

Quem circula a pé pode prestar atenção a muitos aspetos que habitualmente passariam despercebidos, quer com as pessoas, quer com os espaços, sejam eles naturais ou construídos; e nestes últimos destaco por exemplo as casas, os muros e os portões - Casas de mostrar sucesso na vida. Portões e muros para afastar (ou para proteger?). Casas-homem e casas-mulher. Casas feitas aos bocadinhos, sofridas. Por todo o lado sinais de muita emigração. Esta etapa além de ser mais bonita, passa por zonas mais habitadas, investidas e equipadas, com bastantes cafés que tanta falta me tinham feito ontem. 

Fig 2: Localização de Redondela num mapa da costa galêga
Uma das paragens a meio da manhã foi num café pastelaria na loja de uma vivenda – fiquei impressionada com a beleza dos bolos que podiam estar na montra de uma qualquer capital europeia; mas ainda fiquei mais impressionada com a cara de zanga da senhora (presumivelmente a dona e pasteleira) – e pensei que devia ter uma vida triste. Será que é ela a artista? Quereria estar noutro sítio? A casa é enorme, meia por acabar, descuidada; menos a loja que está improvavelmente cuidada e investida. O sol ilumina a serra em frente com uma luz belíssima, meio enevoada, mas a senhora zangada não deve ver esta beleza. Quem lhe comprará os bolos? Como será a sua vida? As pessoas são tão densas…

Hoje também experimentei o medo, primeiro à saída de Porrinõ quando comecei a ler nos muros avisos de cuidado com assaltos de toxicodependentes (não me cruzei com ninguém mas fiquei mais alerta); depois, quando passei por uma aldeia e me cruzei com um homem que simulava estar a urinar mas mostrava o pénis e a terceira, já perto de Redondela, quando passei por outro homem que estava sozinho num parque de merendas e me pareceu suspeito. Não aconteceu nada em nenhum dos casos e nunca saberei se os receios que estas situações me provocaram tiveram causas reais ou fantasiosas; mesmo assim, na segunda situação soube-me bem que o casal em que ele tinha ar de segurança, viesse logo atrás.

Por outro lado, um dos medos que levava de casa era o de cães ferozes e os cães que tenho visto ficam calados à passagem dos peregrinos, como se já estivessem habituados. Até agora não tinha sentido medos, mas senti muitas vezes a vulnerabilidade aumentada com a noção de que não sabia por onde ir, não sabia se estava no caminho certo e/ou tinha pouco controlo sobre outros aspetos, mas ao mesmo tempo tenho sentindo um aumento de confiança – o que parece paradoxal. E esta vulnerabilidade parece que tem menos peso do que na vida, onde é mais fácil mascará-la. No Caminho tenho aprendido a reforçar as hipóteses de solução e a contar com a ajuda de outros.

São 11.30h e cheguei ao albergue de Redondela que só abre às 13h. Hoje vou ficar por aqui. Apesar da etapa ser bonita teve várias subidas muito acentuadas e achei que preciso de me poupar para conseguir fazer o resto do caminho: os 14 Km de hoje chegam-me muito bem.

Fig 3: Albergue de Redondela
Atravessei a cidade guiada pelas setas amarelas e fui até ao albergue que fica num edifício histórico recuperado mesmo no centro histórico. Estou a gostar da experiência e, pela primeira vez, sinto-me à vontade para me descalçar e sentar-me no chão, encostada à mochila enquanto espero que o albergue abra e olho, com um certo embevecimento, para as botas cobertas de pó. 

À entrada estão outros peregrinos que descansam e esperam a abertura. Nesta espera percebo a existência de chicos-espertos que caminham sem bagagem mas que agora estão à porta do albergue com umas enormes mochilas – não percebo a ideia…mas, enfim, cada um faz o seu caminho (é uma das frases que mais oiço por cá e que me começa a fazer muito sentido).

O albergue abriu, é bonito e ficou cheio de peregrinos num ápice. Um dos aspetos curiosos são as formas como cada pessoa apropria a cama beliche, mesmo sabendo que é só por uma noite. Algumas pessoas trazem lençol e fronha de casa, outras põem tudo muito direitinho em cima da cama, outras à balda, umas mantém quase tudo dentro da mochila, outras não… são impressionantes as variações, sobretudo tendo em conta que os peregrinos trazem poucas coisas consigo. Outras pessoas (como a jovem do beliche ao lado) trazem troféus do caminho: um ouriço de castanha, uma pinha, folhas… fazendo-me lembrar a minha costela recolectora. 

Também varia o que cada um faz, muitos ficam a descansar em cima das camas, uns escrevem, outros telefonam ou ficam nos computadores pessoais, outros tratam logo da higiene e lavagem da roupa, outros saem…mas nas horas a seguir à chegada, as pessoas, façam o que fizerem, tendem a recuperar do cansaço em silêncio. Eu fiz a cama, tomei banho, lavei roupa e dormi uma sesta de duas horas. Custou-me adormecer porque no beliche do lado, a jovem escoteira e a sua amiga (de um qualquer país de leste) estavam a tagarelar alto. Mexi-me, fiz cara feia para perceberem o incómodo que causavam e mudarem de sítio – provavelmente para a sala de convívio. 

Quando acordei fui explorar o albergue e encontrei uma exposição de pintura que apreciei com detalhe; depois fui dar uma volta pela cidade para conhecer a tal «praia». Redondela rima com mortadela - era um nome que não me dizia nada. Mas as baixas expectativas às vezes trazem surpresas: a cidade é bonita, está bem cuidada, tem uma localização fantástica na confluência de vários rios e um centro histórico bem preservado e vivido. É atravessada por canais, tem muitas pontes de circulação pedonal e nota-se que os rios devem ter caudais respeitosos no Inverno. 

A cidade está toda envolta por montanhas muito verdes. Depois de andar uns 20 minutos cheguei a uma albufeira (só podia ser uma albufeira, pensava eu) …mas nada batia certo: cheirava a mar, a água tinha limos e algas marítimas, as gaivotas andavam no lodo perto do pequeno cais de embarque e na praia, havia um pequeno porto com barcos de pesca (semelhantes aos de Sesimbra ou Peniche), circulavam uma espécie de cacilheiros que saiam do local onde eu estava, no meio da albufeira havia uma ilhota com um tamanho razoável e via uma praia com tudo o que as praias devem ter; até maré. E qualquer coisa nas características da água e do vento me dizia que aquilo era mar.

Fig 4: Arredores de Redondela
Em terra havia vestígios de indústria conserveira e os cafés do embarcadouro eram parecidos com os da Trafaria. Só me faltou ir provar a água e juro que não fui apenas por acanhamento. Tudo isto é muito estranho! Este «mar» no meio das montanhas é dissonante, coloca-me perante evidências que não batem certo. Mas por outro lado, porque é que não pode haver um lago disfarçado de mar no meio das montanhas?!

Bem, eu hoje estou «fora de pé», decididamente não estou confortável. Antes de mais, pelo ‘embrulho’ (lavei a minha roupa apresentável e estou vestida de forma pouco airosa) e depois, pelas saudades – de casa, dos meus, da minha zona de conforto. Também não tive nenhum daqueles pensamentos que se impõem durante a caminhada. Quem sabe se a aprendizagem de hoje não é essa? Sobre as saudades, sobre o valor que têm todos e tudo na minha vida, sobre a importância de quem sabe quem nós somos e nos (re)conhece?

O tempo mudou. Aproxima-se uma trovoada. Passar do sol è chuva era algo que não estava nos meus planos. De volta ao albergue (já depois de me ter abastecido para o jantar de hoje e pequeno-almoço de amanhã) cruzei-me com uma espanhola – a Sílvia – com quem conversei um pouco. Ganhei coragem e falei-lhe da minha estranheza no lago. Primeiro, como boa espanhola não entendia o que eu lhe estava a tentar dizer; depois, quando entendeu achei-a perplexa e só me respondeu com a maior naturalidade do mundo «cheira a mar porque é mar».

E eu, de repente, plim, fez-se luz com o recorte particular da costa galega e consegui ver Redondela entre Vigo e Pontevedra, com as entradas de mar. Senti-me muito palerma mas não tinha ideia de que, visto deste lado, pudesse fazer tamanha confusão! Hoje, o melhor que faço é ir dormir mais cedo para ver se amanhã estou menos estranha. Antes de adormecer ainda me lembro do piar desagradável de uns grandes pássaros pretos (Corvos? Gralhas?) que estão em todos os bosques…

Isabel Passarinho

(continua...)


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