sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Cronicas de uma viagem - Caminho de Santiago (parte IV)

Cronica 4 – O Caminho faz-se como se pode
Dia 5 –Valença/Porrinõ

Sai cedo, como de costume, para fazer a etapa até Redondela contando com um percurso de cerca de 31 Km; o plano B, era parar em Moss, uns 15 Km antes, se estivesse muito cansada. [Dormi mal com dores nas pernas. Acordei a meio da noite e, só sosseguei um pouco, depois de uma auto massagem com uma dose generosa de creme]

Antes de sair do albergue ainda troquei umas palavras com umas senhoras de Cascais que me contaram que estavam a regressar sem ter chegado a Santiago: uma porque tinha apanhado uma intoxicação grave com fruta (tratada com produtos químicos) que comeu pelo Caminho e as outras, por solidariedade. Avisaram para não comer nada diretamente das árvores (o que eu registei bem) e desejaram bom caminho. Estavam tristes, mas garantiram que iam voltar para o próximo ano.

Acho que nunca vi tantos ‘nascer’ do sol! Habitualmente, não sou madrugadora mas percebi que, em tempo de calor, é prudente fazer o trajeto o mais cedo possível e que, para além da razão prática também é muito agradável – era quando me sentia mais animada e cheia de energia. 

Atravessei Valença (com tudo fechado) com este ânimo, passei a ponte/fronteira sobre o rio Minho e já estava em Espanha quando começou a clarear. Não tinha bebido café e a primeira paragem foi para tomar um bom pequeno-almoço em terras galegas: sumo de laranja natural, ‘bocadilho de ramon serrano’ e café ‘solo’ (por €5,40 – na passagem para Espanha, a diferença de preços é evidente). O café era familiar e simpático, com uma senhora ao balcão que tinha cara de boa pessoa e falava com os poucos clientes do sofrimento das pessoas nesta crise de emprego e de sustento. [Apesar da maior influência Celta, os galegos são muito parecidos com os portugueses.]

Fiz os quatro quilómetros até Tui pela beira-rio e subi à cidade – o centro histórico, à volta do seu mosteiro/castelo, fica bem alto. [A sinalização do Caminho em alguns locais, sobretudo nos centros históricos das cidades, dá ideia que foi feita também com preocupações turísticas, dando voltas e mais voltas supostamente para nos fazer passar por locais de interesse a visitar. Confesso que, às vezes, fico irritada porque tenho a noção que podia atalhar. Mas não arrisco largar as setas]

Depois da cidade, o trajeto prossegue ao nível do Rio Louro, passando por uma zona húmida com muitos braços de rio e prados, supostamente protegida mas nem sempre muito preservada do ponto de vista ambiental. O trajeto passa por algumas aldeias pobres e tristes. Complica-se, quando passa por grandes troços de estrada nacional e por zonas de eucaliptal, sem sombra.


Uns quilómetros depois de Tui (a bem dizer, perdi um pouco a noção da distância porque o Caminho ficou menos agradável e eu fazia um esforço de concentração) fiz novamente uma longa pausa e veio-me à cabeça as condições de possibilidade: o Caminho não se faz como se quer, faz-se como se pode.

Comecei a ter a ideia de que não sabia se os meus pés me deixavam ir onde eu queria – estava cheia de dores, não eram bolhas, doíam-me mesmo os ossos dos pés; Também me preocupei pela veia que sinto latejar no ouvido e continuo a deitar sangue do nariz. Fiz uma paragem longa num bosque que me pareceu bonito e tive o cuidado de me afastar um pouco do caminho para ficar sozinha e não ter que falar com os peregrinos que vão passando. Precisava de descansar e até talvez dormir um pouco, mas o barulho de uma serra a cortar madeira não deixou… 

O primeiro peregrino que encontrei ainda em Tui foi um homem inglês que não tem um braço e que já tinha visto no Albergue – saudou-me e seguiu mais ligeiro que eu. Muito depois, noutra paragem passou o urso alemão, que parece cada vez mais o bom gigante da história do Guliver. Perguntou em que albergue eu ficaria e eu respondi-lhe que talvez em Moss ou em Redondela. Reparei que o urso alemão tem os dedos de uma mão estropeados - será sequela de guerra? Pareceu-me entender que ele tinha sido soldado (não percebo nada de patentes). Mas fico a pensar sobre quais seriam as tristezas que ele engoliu para ficar assim tão obeso?

Passaram mais peregrinos que não me eram familiares mas esta foi uma etapa dura com pouca conversa, com muita estrada, muito sol e sem cafés. Muitas vezes me passou pela cabeça que não conseguia dar mais um passo…

Uma das longas paragens foi à sombra de um castanheiro perto de umas casas, numa reta que atravessava as tais aldeias com um ar deprimido. Tinha acabado a água no cantil, não passei por nenhuma fonte de água potável e estava aflita com a veia a latejar no ouvido.


Um tempo depois começo a prestar atenção ao estalar dos ouriços e é de facto um espetáculo estar de baixo de um castanheiro imenso no meio de quase nada, a ouvir a música dos ouriços a abrir e a cair no chão atapetado. Mais improvável ainda foi o contato com a senhora da casa ao lado (e dona do castanheiro) que veio saber quem eu era e o que fazia ali. Disse-me com o ar desempoeirado dos galegos que podia falar português porque ela entendia bem e perguntou se eu precisava de alguma coisa. Perdi a vergonha e lá lhe disse que agradecia água. Levou o cantil para casa e passados uns minutos voltou com o cantil cheio mais uma garrafa de água fresquinha e um copo com gelo – tive a noção que este apoio me salvou.

Trocou mais umas palavras, desejou-me bom caminho e foi assar as sardinhas (?) para o almoço, para não perder as brasas. Antes de alcançar o portão, ficou à conversa com outra senhora mais velha (que fiquei a saber ser sua irmã), de muletas, que insistia em saber quem eu era. A irmã mais nova disse-lhe que eu era peregrina, Isabel, de Lisboa e foi para dentro de casa, depois de lhe ralhar por ela se dirigir ao castanheiro, com medo que escorregasse.


Sozinha? Perguntou a senhora de muletas, aproximando-se de mim. Respondi cordialmente que ‘ninguém está sozinho’ e ela pareceu concordar. A seguir começa a falar em galego (só apanhei algumas coisas) sobre a vida, comparando a época da guerra civil e agora, a filha que voltou para a terra com a sua família e já não a deixa cozinhar porque ela não sabe fazer as comidas novas que eles gostam, o marido que morreu à 6 anos e a deixou com grande desgosto, intercalando com comentários do género «ninguém apanha estas castanhas» ou «não sei porque estou a falar tanto consigo se não a conheço».

Não sei se estas duas senhoras tiveram a noção do bem que me fizeram: pelo abastecimento de água mas também porque me fizeram lembrar a minha mãe e isso deu-me muita força. Entretanto, a veia que latejava, parou. E eu continuei caminho.

Andei o que me pareceu ser um caminho interminável por estrada, à chaparreira do sol e ainda parei mais uma vez, à sombra de uma latada elevada em relação à estrada: tirei a mochila, descalcei-me, tirei meias e deitei-me no chão a descansar (acho que dormitei…).

Quando achei que conseguia andar um pouco mais, pus-me a caminho e passei pela zona industrial de Porrinõ, até entrar na cidade.

À entrada o caminho tem duas setas, uma que vai ao longo do rio e outra que se dirige para dentro da cidade – já não sei porquê optei por esta última. Tinha à espera um reta interminável sem sombras, cheia de indústrias e grandes espaços comerciais (El corte asiático, por exemplo, que prometia…). A única coisa boa, foi que também tinha cafés.

Parei no primeiro que vi, bebi dois sumos de fruta quase de seguida, comi uma pequena tapa e vim para a esplanada tomar um café. Só lá estava um senhor que não resistiu a fazer perguntas: para onde vais? De onde vens? Estás sozinha? Não tens medo? São 4 dias a andar bem até Santiago. Fiz conversa de circunstância e logo que me achei capaz, pus-me a caminho; pelo menos, já sabia que faltava pouco para o albergue e decidi não ir mais longe.

Estava de tal maneira cansada e torrada com o calor que fui atrás de outra peregrina e entrei atrás dela numa pensão com a vieira assinalada, sem perceber que não era um albergue. Quando percebi, já estava lá dentro, a senhora já tinha mandado a filha adolescente mostrar-me o quarto e eu já não tive coragem de me ir embora – está limpo, custa €22,00 e pode-se lavar a roupa.

Larguei a mochila e atirei-me para cima da cama. Passado um tempo tomei um banho, tratei da roupa e como estava sem rede espanhola no telemóvel, fui à receção ver se resolvia o problema mas a senhora não sabia e mandou-me a uma loja de telecomunicações. A contragosto, fui. A senhora da loja foi muito gentil e resolveu o problema: depois fui às compras de comida. 

Achei a terra muito feia, não me apeteceu ver nada, não tinha nenhum motivo para estar na rua e fui para a pensão deviam ser umas 5 da tarde; mas a pensão também não tinha graça, sobretudo agora que eu estava a gostar dos albergues e daquela condição partilhada com os outros peregrinos.

Aproveitei para dormir sossegada (sem roncos) e tentar restabelecer-me para amanhã poder prosseguir caminho. E pronto, hoje é isto que o caminho tem para mim. Amanhã, era bom que tivesse menos dores nos pés e nas canelas das pernas… 

Isabel Passarinho

(continua...)

Sem comentários:

Enviar um comentário