quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Cronicas de uma viagem - Caminho de Santiago (parte III)

Cronica 3 – Ninguém está sozinho


Dia 4 – Rubiães/Valença

O despertador deu sinal às 5h mas estava a dormir tão bem que fiquei deitada mais meia hora. Ainda me admiro como consegui adormecer com o concerto de roncos de ontem, mas o cansaço deve ter mandado mais e, provavelmente, até me juntei ao coro. Arranjei-me, arrumei a mochila, tomei pequeno-almoço e sai eram quase 7h. Estava uma madrugada bonita de um dia que se adivinhava de muito calor. Não sabia ainda se faria a etapa até Valença ou até Tui, mas acabei por decidir ficar mais uma noite do lado português. A etapa tem 18 Km, é maioritariamente plana e tranquila, passando por Ponte Romana (1Km), S. Bento de Porta Aberta (5Km), Gontomil, Fontoura (8Km), Paços, Tuído (15Km), Arão e Valença (18Km).

Sobretudo no percurso mais matinal, o trajeto é quase todo feito pela estrada romana, por vales e à beira de vários rios, ladeados de vegetação com cheiros incríveis e uma luz meio enevoada cortada pelos primeiros raios de sol…de filme! A banda sonora era constituída só pelo som da água a correr e pelo cantar de muitos pássaros diferentes.

Este é uma terra de abundança onde, por todo o lado, se sente a generosidade da natureza.
Mas também se percebe que é uma terra da construção civil e que as casas são um valor maior do que a sua própria funcionalidade. Existem muitas casas de mostrar, muitas também que reinventam outras paragens e outros climas, muitas que ainda estão inacabadas, outras que ainda lembram o sofrimento do dinheiro ganho para as construir…

O caminho, como a vida, tem de tudo: também passei por uma extensa zona ardida recentemente, que ainda cheirava a madeira e terra queimadas – foi uma sensação de angústia passar pelo meio desta floresta ardida…E os últimos 2Km da etapa foram por meio das aldeias já muito suburbanas e por estrada, sendo a entrada em Valença alcançada por uma subida bastante difícil, sobretudo tendo em conta o calor.

Numa daquelas paragens em que já me mandava para o lancil do passeio mais à sombra passou um velhote na sua deslocação de aldeia, que me desejou ânimo, contando que já tinha feito o Caminho 4 vezes e que faltava pouco para Valença – naquelas circunstâncias estes incentivos espontâneos têm um imenso valor.

Cheguei a Valença, mais propriamente ao Albergue de S. Teotónio (uma vivenda bonita com jardim, ao lado do quartel dos bombeiros) eram 12.30h. – a etapa não foi difícil, mas eu estou cansada a somar, por ontem e por hoje. Quando cheguei o albergue estava fechado, um papel na porta informava que era municipal e só abria às 13h mas estranhei sobretudo não estar ninguém – será que tinham ido para Tui (são mais 4 Km) todos os peregrinos com quem me fui cruzando? 

Passado pouco tempo chegaram o francês fala-barato e o urso alemão, pousaram as mochilas e deram conta de que a casa estava aberta pela entrada da sala que dava para o jardim. O francês, que é veterano no Caminho (fez o Caminho Francês 10 vezes, embora seja a primeira que faz o Caminho Português e logo a partir de Lisboa) informou que o uso nos albergues é podermos pôr as mochilas em fila, por ordem, dentro ou fora e, se estiver aberto, podemos utilizar a zona social (WC, cozinha, sala, zona de lavagens); só não podermos subir para os quartos, enquanto não dermos oficialmente entrada. Segui quem sabe e fiquei ‘esparramada’ no sofá da sala, enquanto o alemão gritava de contente porque tinha conseguido aceder ao hi-fi e o francês fala-barato inspecionava tudo e falava sozinho.

Passado pouco tempo chegou a senhora que fazia o acolhimento, fui inscrever-me, carimbar a caderneta de peregrina, pagar €5.00, receber o lençol e a fronha e subir aos quartos-camarata. Fiz a cama, deitei-me e adormeci logo por cima do saco-cama, mas o francês foi acordar-me por duas vezes: a primeira, para perguntar se eu estava bem (estava, antes de ele me acordar) e a segunda a convidar-me para ir comer salada de tomate com atum (agradeci, mas disse que não tinha fome). Ao fim da segunda tentativa, já não consegui dormir e decidi ir dar uma volta pelo centro da cidade.

A ideia que tinha de Valença demorou bastante a encaixar, porque a cidade está muito diferente e as autoestradas a descaracterizam, com os respetivos acessos e as inevitáveis rotundas. Do albergue ao centro histórico é muito perto e a entrada na fortaleza faz-se pela Porta do Sol. Chocou-me que os carros ainda circulem dentro da fortaleza (que está muito bem conservada do ponto de vista dos edifícios e das praças e espaços ajardinados) e chocou-me que 80% do comércio seja de roupa de casa (cozinha, cama e casa-de-banho) e os outros 20% sejam cafés e restaurantes, mais ou menos vazios. 

Fig 2: Vista aérea de Valença
Até admito que os vizinhos espanhóis gostem (e gastem o seu dinheiro) das roupas para casa mas tanta oferta igual é desesperante. Que falta de imaginação! Não se vê uma galeria de arte, uma loja menos convencional, artigos tradicionais ou um bar/café alternativo, nada para além do mundo dos atoalhados e dos jogos de cama. 

Fui ver o rio Minho, as muralhas com a sua forma estrelada e a vizinha Espanha do outro lado do rio, com destaque para a cidade de Tui que se avista na outra margem, quase em frente. Depois de dar uma volta pelo miolo histórico dentro da fortaleza, deambulei pela parte nova da cidade e fui comprar uma revista e beber um café numa esplanada.
  
Comecei a pensar que tinha sido rude com o Francês fala-barato e que talvez fosse simpático fazer jantar no albergue para comer com ele e com o urso alemão… Estava nestes pensamentos quando sou interrompida pelo francês que também andava a passear: pergunta se está tudo bem (eu devo estar com uma cara mesmo muito cansada) e se não quero jantar com eles no albergue. Digo-lhe que sim e vamos às compras a um supermercado ali perto.

O Serge (soube entretanto o seu nome) deve ter uns 60 e muitos anos, bem conservados e enérgicos, é casado, pai e avô babado e passa a vida a falar da sua família e amigos, numa verborreia que nem sempre é fácil de seguir, mas parece boa pessoa. Está reformado e foi militar. Como o urso alemão, que é muito mais novo, muito calado, tem uns 2m metros de altura e outros tantos de largura, uma barba cerrada que o faz parecer mais velho do que provavelmente é – Hans Joaquim, de seu nome. Não se conheciam de lado nenhum, encontraram-se em Valença e parecem amigos de longa data. 

Fig 3: Albergue S. Teotónio, Valença
Serão umas 6h da tarde quando voltamos ao albergue. A cozinha ainda não tem ninguém o que é bom para darmos início à confeção do jantar, já que depois é mais difícil a competição pelo fogão e pela loiça que é escassa para o número de peregrinos.

Percebo que o Serge quer ser o cozinheiro e não faço questão nenhuma de concorrer com ele. Meto-me a fazer umas bruchetas para entrada com tomate picado, alho e cebola, colocando depois o preparado em cima de metades de pão fresco, temperado com um pouco de azeite e com um pedaço de atum por cima – ficou bonito e foi apreciado, o que me deixou contente; foi apreciado inclusive pelo jovem italiano de Nápoles que falava um inglês perfeito, estava a fazer o caminho com dois amigos e não tinha encontrado o supermercado – ofereci-lhe uma das nossas bruchetas que ele comeu satisfeito. 

[Esta oferta e partilha de alimentos entre os peregrinos é comum. Suponho que também pela razão prática de não se carregar o que sobra, ou se deixa no albergue (os secos) ou se reparte, perguntando a quem está, se quer]. 

O Serge fez um arroz branco para acompanhar um refogado de frutos do mar com tomate que também estava muito bom. E o Hans trouxe um vinho verde para acompanhar que também não era nada mau. Comemos melão de sobremesa. O alemão até estava comovido durante a refeição, que lhe deve ter sabido muito bem.

Enquanto o jantar era preparado, o albergue começou a encher e enquanto jantávamos já havia muita gente por todo o lado. Apesar da conversa à mesa ser interessante, pus-me a reparar que parecíamos todos habitantes marcados do planeta Quéchua, porque todos tinham várias etiquetas desta marca de vestuário e equipamento desportivo – a globalização tem destas coisas…

Uma das exceções à massificação da marca era um homem mais velho que apareceu no final do nosso jantar, com um cabelo comprido grisalho, magro e que dava nas vistas sobretudo pela t-shirt feminina que vestia, muito garrida e com flores. Não percebi a nacionalidade mas falava várias línguas e ficou à conversa em francês com o Serge fala-barato no final do jantar.

Entretanto, eu fui ao computador da sala enviar uma mensagem porque não estava a conseguir fazer chamadas. Fui rápida porque ainda estou traumatizada com o vírus que tomou conta do meu outro endereço eletrónico e perguntei na receção porque não tinha rede. A senhora foi muito gentil, explicou-me que o problema era a operadora telefónica espanhola «entrar por ali a dentro» e ajudou-me a reconfigurar o telemóvel para continuar com a rede portuguesa. 

[Realmente, hoje as fronteiras ainda são mais fictícias do que antes (mas ‘antes’ quando? As fronteiras sempre foram convenções...)] Bom, falei com quem queria falar e fiquei descansada.

Estava uma noite com uma temperatura fantástica e uns raios de vermelho no céu já escuro. Muitas pessoas estavam à conversa ou só a descansar no jardim. Eu fiquei a fumar um cigarro sentada nas escadas. Ao lado estava um casal português (de Vila Franca de Xira) que já vinha de regresso de Santiago. Estivemos um bom bocado à conversa: conheciam bem o Sobral de Monte-Agraço, já tinham feito caminhadas por lá, em algumas das quais eu também tenho participado e estavam inscritos num grupo de caminhadas que me interessava conhecer melhor.

Um pouco antes das 10h da noite fui-me deitar. Antes de adormecer pensava que por aqui ninguém está sozinho. Ou melhor, estamos e não estamos, na medida em que cada um quiser (ou não) interagir com os outros – o sentimento de solidão depende pouco de estarmos fisicamente sós ou acompanhados. 

Hoje foi um dia em que muitos outros estiveram presentes, tanto aqueles que andam sempre comigo, como estes conhecimentos de circunstância. No suposto que, mesmo em grupo, cada um faz o seu Caminho, não deixa de ser surpreendente uma certa predisposição para o respeito, para a gentileza e para a generosidade com o outro que se sente por aqui. Que diferença de humor em relação à noite anterior, em Rubiães! 
Em Valença o ambiente no albergue era tão bom que me foi fácil ir falando com várias pessoas, apesar da minha característica timidez… E agradeço ao Serge ‘fala-barato’ (que não voltei a ver) e ao ‘urso’ Hans o único jantar partilhado que fiz no caminho.

Isabel Passarinho

(continua...)


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