quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Praxes

Mais um ano letivo se inicia. E como em cada um dos últimos anos letivos transatos, mais um ritual se cumpriu. Mas este, há muito que não é um ritual qualquer. É o ritual que aguça os sentidos de qualquer meio de comunicação social, sedentos por matérias que lhes rendam “algum” no final do mês, das polémicas que deixam famílias inteiras em terras, deixadas lá longe, com o coração nas mãos, o ritual dos abusos e das acusações, tecidas em forma da ponta de um dedo.

Mas não só.

É a receção aos novos alunos em cada instituição de ensino superior do nosso país, é a iniciação à tradição académica, é o despoletar de um caminho que ruma à conquista da independência, em que a família passará a ser aquela que se escolhe e que nos acolhe no destino de chegada.

Refiro-me, obviamente à praxe académica.


É complexo, atrevo-me a dizer que é controverso, definir a praxe académica em cada uma das suas vertentes, pois cada ato praticado no decorrer deste ritual de iniciação à vida académica, ou, caso considerem, ritual de receção aos novos alunos, depende do estado de alma, do bom senso e da consciência com que cada “praxante” o pratica. Mais ainda me atrevo a dizer que, os resultados obtidos na prática deste ritual estão igualmente relacionados com a capacidade dos alunos que se submetem ao ritual têm, para recusar a execução de qualquer ato que considerem abusivo, e para discernir um abuso de um ato que visa desenvolver a desinibição de cada grupo de alunos, abrindo assim espaço para a formação de laços que perdurarão durante todo o percurso académico, e toda a vida. Caso assim não seja, poderão ser graves as repercussões, resultando em sérios danos à saúde mental e física dos vários intervenientes, diretos ou indiretos.

Atente o leitor deste artigo que, quando nos referimos à “praxe”, referimo-nos a práticas que envolvem atividade física, que como em qualquer atividade que envolva movimento, implica riscos de quedas e machucados, e esforço mental, que envolvem um desenvolvimento psicológico acima do normal, de modo a clarificar a diferenciação adequada do que são as regras do jogo e do que são abusos psicológicos.

Ao longo dos últimos anos, assistimos a um conjunto de ocorrências, hipoteticamente derivadas do contexto de praxes. A primeira delas, relacionada com um ritual da Universidade Lusófona, em que várias vidas se perderam. A gravidade da situação foi o ponto de partida para que fossem travados debates, impostas proibições e implantados limites pelas entidades competentes. No decorrer dos vários incidentes, correta ou incorretamente relacionados com a praxe académica, também a Universidade do Algarve se viu envolta em polémica, quando no decorrer da praxe de um dos cursos desta universidade, uma aluna de uma das licenciaturas desta instituição abusou de substâncias alcoólicas e acabou por ser transportada para a unidade de saúde mais próxima. Foi praxe? Quiçá. Mas de uma coisa tenho a certeza: ninguém é obrigado a consumir seja o que for em contexto de praxe.


Reforço: “os resultados obtidos na prática deste ritual estão igualmente relacionados com a capacidade dos alunos que se submetem ao ritual têm, para recusar a execução de qualquer ato que considerem abusivos”.
Na sequência deste acontecimento, imediatamente relacionado com a praxe, muito pela influência exercida pelos media na opinião social, o ritual de praxe da Universidade do Algarve é sujeita a várias restrições, através de um despacho reitoral que, convenhamos, apesar de ser extremamente respeitável, provém de alguém que muito provavelmente nunca foi praxado e não entende o ritual.

Atente-se: Só entende este ritual quem se atreve a vivê-lo. E quem se atrever a vivê-lo, garanto, jamais o abandonará.

É nesta linha de raciocínio que, apesar do respeito que nutro pela personalidade e pelo cargo do Sr. Reitor da Universidade do Algarve, atrevo-me a discordar da decisão tomada, pois acredito que, muito poucos académicos da mesma geração tiveram a oportunidade de participar em semelhante ritual, impossibilitando-os assim de compreenderem a sua essência.
Ainda assim, considero os atos desrespeitosos tomados contra a entidade máxima desta instituição, de extrema falta de respeito e formação, partilhando da opinião de quem sabe responder sem agredir.

É neste sentido que o Conselho de Veteranos da Universidade do Algarve, até ao momento com uma atuação mais superficial, tomou nova força e, em conjunto com a Associação Académica da Universidade do Algarve, tomou novo rumo e ganhou novo sentido: A defesa da praxe académica, em toda a sua transparência e plenitude. 

Neste sentido, foram formadas equipas e criados cargos de liderança que, apesar de há muito existirem noutros pontos do país, na nossa casa ainda estavam por ocupar. Refiro-me ao cargo de Dux-Facultis, que me orgulho de ocupar este ano e que visa supervisionar cada local onde decorre o ritual de praxe numa única unidade orgânica de entre as oito da Universidade do Algarve.

Desta forma, e através desta supervisão, tentámos remar contra a maré, colocando em pontos estratégicos, vários representantes do referido conselho com o intuito de evitar a ocorrência dos abusos que até então causaram danos, ou que tenham sido proibidos por despacho reitoral. Tentando manter a maior imparcialidade que me é possível num assunto ao qual estou diretamente relacionado e chamando à atenção do leitor para o facto de que o presente texto é nada mais que um artigo de opinião – a minha opinião – considero que o trabalho de cada elemento desta equipa foi exaustivo e merecedor de louvor, pois varias foram as noites em claro ou as que muitos de nós deixaram o sono meio para socorrer a alguma situação menos adequada.

Apesar do trabalho desenvolvido, a academia continuou de luto. Não por matarem a praxe, pois considero essa luta inútil. Mas por nos tentarem tirar a nossa opção de escolha, por encurtarem a nossa liberdade e por nos fazerem pagar o mesmo preço de uma mercadoria que a maioria de nós nunca quis comprar. Neste sentido, e pela primeira vez na história, por decisão do Conselho de Veteranos, e da Associação Académica, em conjunto com as comissões de praxe desta instituição, o desfile académico apresentou-se à “cidade de cetim” com características que os que o conhecem desde há vários anos, não reconheceram, certamente. A academia vestiu-se de luto e gritou por liberdade através do silêncio. Para trás, ficou o orgulho dos novos estudantes na conclusão da sua primeira abordagem à tradição académica, os cânticos que exaltavam a alegria do início de uma nova etapa que, quase sempre, tem um impacto marcante na vida de cada um, as cores garridas que fomentam ainda mais o seu orgulho pelo curso escolhido, todo o sentido de uma tradição.

Chego ao final de mais esta semana de praxe, com o sentimento de dever cumprido e a convicção de que rumaremos em direção à vitória, ainda que tenhamos de contornar obstáculos e regulamentar procedimentos. Acredito que, com força e fé, mudaremos mentalidades e daremos continuidade a esta tradição que tantos condenam, mas que eu defendo.

E a quem me pergunta porquê, a minha resposta é breve: há seis anos atrás, pisei pela primeira vez esta cidade e o campus desta instituição. Não passava de uma criança assustada, sem orientação nem rumo a seguir. A primeira abordagem que me fizeram muitos daqueles que até hoje, são parte da família que aqui construi e que aqui me amparou, não facilitou a minha integração. Mas aquela foi apenas a primeira abordagem. Rapidamente percebi que aquelas eram as pessoas que, durante largos meses, e anos, estariam a ali para me dar a mão e para me dar o colo que precisasse, ainda que em forma de uma noite de copos, numa mesa rodeada de amigos. Se hoje os tenho comigo, digo certamente que a culpa é da praxe. Foi neste ritual que entendi que muitas vezes o sacrifício, não é o inferno que parece e que os mais duros serão para nós os maiores exemplos. Foi naqueles primeiros tempos, os da praxe, os tempos em que ri, em que chorei, em que sofri, mas acima de tudo em que sonhei. E para que não acha suficiente, sublinho que foi também na praxe que me apaixonei.


Hoje olho para a minha primeira semana de praxe nesta instituição, com o carinho de quem ao longo de uma semana, olhou para um par de sapatos e os aprendeu a amar.

Que num futuro próximo, nos seja permitido ter a liberdade de “praxar, onde é bom viver”.

Saudações Académicas,

Miguel Brito de Oliveira
(Orgulhosamente praxante)

3 comentários:

  1. Boas,
    concordo e subscrevo assim como falei neste post http://umaquestaodeespaco.blogspot.pt/2016/09/praxes-dramatizacao-ou-verdade.html
    vão lá dar uma olhada ;)

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  2. Viva Miguel! O tópico da praxe peca, a meu ver, como um sem número de assuntos de relevância no nosso país, por não ser abordado por todas as partes envolvidas como uma discussão construtiva para a resolução de um problema, para o melhoramento das práticas de integração nas universidades e para que esse propósito que é receber os novos estudantes e prepará-los para os futuros desafios, sejam esses a vida académica, a inserção no mercado de trabalho ou outros, seja feito de maneira mais eficaz.

    Durante anos as direcções das Universidades limparam as mãos de toda e qualquer prática de praxe (abusiva ou não), classificando tais práticas como “coisas de estudantes” e como tal, demasiado insignificantes para que as almas iluminadas que povoam uma universidade e que não são estudantes, queimassem neurónios a pensar no que são, para que servem e porque existem, quais as suas vantagens e quais os seus riscos, permitindo assim, que literalmente se instalasse entre as comunidades estudantis uma cultura de permissividade total em que cada um faz o que quer, sem dar cavaco a ninguém sobre o que quer que seja, situação obviamente perigosa e geradora de situações bastante assimétricas. Academias e cursos com um maior entendimento dos propósitos da praxe tiveram certamente mais facilidade em manter-se fiéis aos propósitos de integração de uma praxe, outros menos informados ou bem liderados foram reduzindo a praxe à sua expressão mais fácil e vazia, consistido em gritaria com pouco sentido, pinturas faciais e álcool. Outros ainda (felizmente quero crer não muitos) terão caído numa expressão perversa de algo que se quer fazer passar por “praxe” que se baseia no abuso, físico, psicológico ou emocional dos recém-chegados.

    Hoje em dia, com o meio académico cada vez mais politizado e por conseguinte, as praxes também, vê-se com frequência associações académicas serem usadas como fantoches pelas direcções de Universidades (também elas cada vez mais politizadas) e outros intervenientes políticos para que estas “resolvam” as praxes e lidem com os “problemas” a seu jeito, com o único critério sendo a coisa não dar barraca até ao final das praxes e não haver comunicação social envolvida.

    Ainda que hoje a abordagem seja mais sofisticada (não se ignora o problema de maneira tão clara, assume-se o problema, finge-se que se preocupa e que, claro, estamos de olho, sem ter o mínimo de entendimento sobre o que se passa, porque se passa e como se passa) o problema de raiz subsiste. As praxes não são um problema, até porque só vive a praxe quem quer (e aqui novamente concordo com o que dizes, há quem o faça só para ter o direito de vestir uma capa no final do curso), mas abusos nas praxes (como em qualquer outra actividade de qualquer natureza) são sim o problema. Mas não são um problema dos estudantes, esses garotos imberbes e mal comportados que vão passar anos de boémia e ócio à custa dos pais (e que, já agora, são a vida dos pólos universitários, são as grandes mentes de um pais, dos centros de investigação, da saúde à arqueologia, das artes ao desporto, da literatura à economia, e são quem paga ordenados e dá trabalho a todos os não estudantes que povoam as universidades, e que dinamizam as economias nas cidades e vilas em que estão sediados) mas um problema de toda a comunidade académica, não só devido ao peso que os estudantes têm dentro de qualquer universidade, dado o seu número, mas também porque qualquer esperança de regulação e consequente melhoria de todo o processo de praxes tem que ter várias partes envolvidas, nomeadamente quem organize, quem pratique, quem regulamente e quem fiscalize. Se todas as partes forem uma e a mesma corre-se o risco, como até agora, de ser praticamente impossível prevenir, corrigir e/ou punir abusos que infelizmente se perpetuam na praxe, e que denigrem não só o nome da praxe enquanto ritual de integração (na qual só participa quem quer) mas também o das instituições que a albergam.

    (continua)

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  3. Assim, vejo como necessidade para a melhoria das praxes como um todo (uma evolução que ser contínua e natural) e, acima de tudo, para o controlo e mitigação dos abusos, que TODOS os intervenientes, membros das comunidades académicas (alunos, comissões de curso/praxe, conselhos pedagógicos, direcções de curso e de faculdade/escola superior, associações académicas e reitorias) se sentem à mesa a discutir algo que é um problema de TODA a comunidade académica, não as praxes (que a meu ver só podem ganhar em ser discutidas), mas os abusos que decorrem nas praxes.

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