quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Crónica Social - Agora não me importa. Não quero saber.


Neste mês de Outubro fiz o Caminho de Santiago pela Costa, a partir de Caminha.
Um percurso de aproximadamente 176 Km, feito em oito etapas de cerca de 20 Km, durante 10 dias – considerando um dia para ir e outro para voltar para casa.
Foi uma espécie de segundo parto. Já sem as angústias e as inseguranças da primeira vez - que aconteceu em 2013, num Caminho de Ponte de Lima a Santiago. Mas com magia igual.
Maior tranquilidade. Já sabia ao que ia e já sabia que me era possível – o que não é de menos.
Foram o mesmo número de dias, sensivelmente os mesmos quilómetros, a mesma organização fluída e pouco pré-determinada, a mesma mochila emprestada, o mesmo orçamento financeiro em regime low cost e a mesma vontade de limpar a cabeça de lixos e problemas. Tudo o resto foi diferente.
Fui com uma amiga que ia fazer o Caminho pela primeira vez. Escolhi o Caminho da Costa e acabei por ficar em outros albergues – a partir de Redondela segui pelo mesmo caminho que já tinha percorrido e repeti apenas o albergue de Padron.
Reconheci muitos troços do caminho que já tinha feito mas, de facto, tudo era diferente. Até eu, três anos depois, estava diferente. Cada Caminho é único.
De resto eis as razões pelas quais recomendo o Caminho:

 - Pode ser feito à sua medida
Se a ideia de descanso activo lhe faz sentido e tem mais motivação espiritual do que religiosa, então esta aventura pode ser sua sem necessidade de cumprimento de promessa ou expiação.
O planeamento, detalhado ou fluido, está dependente de muitos factores que só lhe dizem respeito a si: a condição física (qualquer pessoa pode fazer o caminho desde que se conheça e o adapte às suas possibilidades), a idade, o seu gosto por ir sozinho ou acompanhado, os seus medos, a sua vontade de se inspirar, ou não, na abundante partilha de outros peregrinos que está disponível na internet, o orçamento que quer afectar, a altura do ano em que pretende ir e, muito importante, a consciência das razões porque quer fazer o Caminho.
Na certeza, confirmada pela experiência destas duas peregrinações, de que só existem os nossos limites para o fazer. E que cuidar de nós é fundamental.

Vamos ser sinceras. Eu gosto de viajar. Gosto de ir, de partir.
O dia de viagem para a partida aconteceu a 02 de Outubro, num percurso de comboio de Santa Apolónia a Caminha e terminou com a travessia do rio Minho de barco e a passeata de 5 km até à primeira cidadezinha galega - A Guardia.
A viagem de comboio permite passar por sítios diferentes dos não-lugares das auto-estradas. Mais humanos e próximos da vida, com mais natureza, onde se percebe a estação do ano em que estamos.
À medida que o comboio avança, ganho distância e a minha disponibilidade aumenta. Vêm-me à cabeça rotinas, ocupações e preocupações, mas deixo ir, agora não quero saber. Agora não me importa.
Chegadas ao Albergue de Caminha um simpático senhor informa-nos que a travessia do rio não se faz à segunda-feira. Decidimos atravessar para Espanha e não dormir em Caminha.
Esta possibilidade de ajuste, para mim é condição necessária. Embora saiba que muitas pessoas privilegiam a previsibilidade de marcações prévias e de uma planificação menos flexível. Faça-o à sua medida.

Perguntamos pelo albergue na vila piscatória e um local dispõe-se e ir connosco até lá, contando a história da terra, das dificuldades atuais para ganhar a vida e da migração e imigração das gentes novas para outras paragens.
Chegadas ao albergue aguardámos. Estava fechado com um letreiro na porta para contactar a polícia local. Um peregrino ciclista já o tinha feito e, passado pouco tempo, vieram os polícias que nos registaram a entrada. Instalámo-nos na camarata e depois de descansarmos um pouco fomos dar uma volta pela terra e jantar um polvo cozido a saber a mar numa esplanada virada para o porto e para o passadiço que o contornava – ponto de encontro das gentes locais. Terminámos o dia com um belo pôr-do-sol.

- Garantia de tranquilidade e contacto com a natureza
A maior parte dos percursos que fiz, tanto neste Caminho, como no anterior, são de emersão na natureza. Apesar de atravessarmos cidades (Baiona, Vigo e Pontevedra) e de termos alguns troços de circulação pela estrada N 550, a maioria do percurso é feita por caminhos muito bonitos em meio natural, atravessando bosques, troços de via romana, passando por pequenas aldeias e vilas em estradas secundárias sem movimento ou em trilhos de terra batida.
Neste Caminho, o tempo com manhãs frescas e suaves, permitiu começar as etapas mais tarde e a um ritmo tranquilo. Aliás, caminhar ao nosso ritmo é uma das sugestões que vale a pena seguir.
Apreciar verdadeiramente os ambientes por onde passamos, sentir os cheiros, as texturas, os sons, as cores, o nascer e o pôr do sol, as casas e as gentes é um dos privilégios deste jogo de sentidos.
Quando andamos a pé vemos as coisas de outra forma, prestamos atenção a pormenores que não nos são habituais. Para mim essa é uma das formas de entrar no meu ritmo, de me conectar com a natureza e comigo própria.
Ao longo do caminho cruzámo-nos com outros peregrinos, bastantes mais a partir de Redondela quando apanhamos o Caminho Português - existe uma disponibilidade, um espírito de solidariedade e simpatia que une os peregrinos e permite ter curtas, honestas e profundas conversas com quem não conhecemos de lado nenhum, nem provavelmente voltaremos a encontrar. Também é uma forma de treino da nossa humanidade e a nossa condição humana sai reforçada.

A primeira etapa decorreu de A Guardia a Mougás, num percurso de cerca de 20Km por trilhos planos e perto do mar. Casas dispersas pela falésia, casas-abrigo improvisadas e terrenos vedados sem casas dão nota de uma procura por gente com menos dinheiro do que vontade de estar próxima destas belas paisagens. Paragem para almoço numa esplanada fronteira ao imponente Mosteiro de Oia.
Uma interessante conversa com a minha amiga sobre ocupação do tempo e sobre o tempo que o trabalho por conta de outrem ocupa na vida. Dizia-me ela, reformada à 3 anos, que já não conseguiria ter essa distribuição de tempo na vida dela, muito embora faça imensa coisa. Este é um assunto ‘quente’ para mim e reforçou-me a urgência de pensar em outras formas de gestão da vida (e do tempo e do rendimento) que não passem por ter o grosso do dia e da energia ocupados por um trabalho assalariado.
Chegàdas ao albergue de Mougás, descansei um pouco. Depois fui até ao mar molhar os pés e acabámos a noite a jantar uns mexilhões gigantes, à conversa com outros peregrinos e a ouvir um Americano que tocava guitarra e cantava baladas.


- Uma forma de fazer Exercício
Adoro andar a pé mas sou relativamente sedentária, não gosto de ginásios e não tenho uma prática física regular. De resto, tenho uns quilos a mais e já passei os 50 anos.
Se se identifica com alguma destas características, pode ser para si o exercício físico que o caminho permite. Não é que os percursos sejam de dificuldade extrema, pelo menos os que fiz, mas a extensão das etapas e o relevo, acrescentam alguns desafios físicos.
Encaro assim como uma espécie de check-up integral de corpo e mente. Vamos lá ver como é que o meu ‘equipamento’ está? Será que ainda dá conta do recado?
Na verdade, muitas vezes e durante anos a fio, vivi sem me preocupar muito com o corpo.
A não ser que ficasse doente ou tivesse sintomas incómodos, dei por garantida a funcionalidade deste equipamento fantástico que é o nosso corpo. Entretanto fui tomando consciência do pouco e do mal que o utilizava.
O Caminõ pode dar esse contributo de alerta vivido do teste e do cuidado consigo.

A segunda etapa foi de Mougás até Ramalhosa. A etapa teria sido menos extensa e cansativa se não tivéssemos largado as setas durante a maior parte do percurso (fomos pela ciclovia ao lado da N550, junto ao mar, num percurso plano e que contorna todas as curvas da costa enquanto o caminho das setas subia a montanha) e se não tivéssemos passado o Albergue de Ramalhosa convencidas que não era aquele.
Estes erros representaram um acréscimo de mais uns 5 km. Felizmente voltámos para trás e embora muito cansadas, tivemos um fim de dia tranquilo num solar - convento. ‘Tudo é mui cercano’ dizia-nos o senhor que nos desfez o engano e que, à laia dos alentejanos, desvalorizou o nosso cansaço.
Esta etapa teve marcos na mudança da paisagem. A passagem pelo Cabo que faz a transição entre as Rias Baixas e as Rias Altas e o avistamento da enorme baía onde se situa Baiona, encaixada pelo verde das montanhas e por uma linha de ilhas, de diferentes tamanhos no mar.
À minha amiga (que viveu em Macau e conhece a Ásia) fez lembrar as paisagens do sul da China. Certo é que é uma panorâmica belíssima. Baiona é uma cidade muito agradável e Ramalhosa também. Cidades cuidadas, limpas, voltadas para a natureza esfuziante daquela localização e a denotar a atratividade de classes sociais com muito maior capacidade económica.
A conversa (de manhã enquanto não estamos muito cansadas) andou pelas dificuldades da comunicação e por partilhas de recursos tentados e a tentar, para melhorar as nossas formas de expressão e relação.

  

-      - Necessidade de alguma Auto-Confiança
Decidir fazer o Caminho tem alguma coisa de corajoso. Percebo que é necessário contornar medos e ter um mínimo de autoconfiança. Em nós e nos outros. Na vida.
Percebo que estou por minha conta (mesmo que vá acompanhada), que tenho que me conhecer e confiar nos meus recursos e que é necessário cumprir metas. Mesmo com algumas hipóteses de improviso - para aqueles, que como eu, se permitem improvisar.
A concentração das forças físicas e mentais no andar representa uma espécie de ritual de cobra, de renovação da pele.
Passa pela cabeça desistir, passa pela cabeça apanhar um transporte entre etapas ou de ali para fora mas no final de cada etapa, existe um sentimento de superação. E percebesse claramente que esta história do Caminho é um post-it de lembrança para a vida, passo a passo, etapa a etapa, com previsibilidade e imprevisibilidade, com coisas boas e difíceis, com confortos e desconfortos. Que o caminho nos confronta, nos desafia, nos coloca muitas questões mas que, como na vida, em última análise, o que importa é como agimos.

Na terceira etapa deixámos a costa e embrenhámo-nos na serra, rumo ao albergue do Freixo, a cerca de 08 km da cidade de Vigo. Nesta etapa cruzámos rotas, deixando a rota do Caminho Português da Costa e atalhando para irmos encontrar o Caminho Jacobeu. Tomei maior consciência da profusão de Caminhos possíveis e também dos riscos de nos perdermos das setas.
O que são marcos? O tempo e a distância podem ser contados de muitas maneiras. Quanto falta? Perguntamos. E as duas ou 3 horas que obtemos por resposta, é sempre um marco que nos parece subjetivo.
A etapa, difícil e bonita, atravessou bosques fechados e frondosos, riachos e aldeias. E, de facto, esta viragem para as serras muito florestadas convida a um recolhimento, a um ‘ir para dentro’ diferente de quando estamos à beira-mar.
Na Associação de Vizinhos que geria o albergue onde ficámos passava-se de tudo um pouco. Ao final da tarde, enquanto esperávamos pelo jantar,chegavam senhoras, jovens e menos jovens, com ar urbano para uma aula de aeróbica, havia crianças a brincar, homens e mulheres que bebiam cerveja e conversavam, aguardando as aulas de folclore das crianças, alguns velhotes com ar rural que conversavam e o casal responsável pela gestão, ele enorme e bem nutrido que adorava cozinhar e nos fez um belíssimo jantar, ela rechonchuda e vestida à minie de aldeia que servia ao balcão do café improvisado.
Um dos homens que estava à conversa na esplanada meteu conversa connosco. Que éramos irmãos mas que tínhamos traído os galegos com alianças com os ingleses. Que eles, galegos, eram depreciativamente tratados por Portugueses em Madrid.Que tinham amigos chegados portugueses.
Apesar dos nos termos deitado cedo, fomos interrompidas pela chegada de uma Russa jovem que estava exaurida e assustada após ter feita uma mega etapa de mais de 50 km e de ter sido surpreendida pela noite na travessia das serras. Foi salva pelo telemóvel com internet e pela solidariedade de uma local que lhe deu boleia até ao albergue.Conversámos um pouco e tentámos tranquilizá-la.
A pequena camarata ficava contigua à sala de trabalho da direção da Associação e, pelas 23h ainda me levantei para lhes perguntar se ficariam a trabalhar toda a noite? Responderam que não e saíram passado pouco tempo.

  

A quarta etapa, de Freixo a Redondela foi a mais dura deste Caminho. Consigo distinguir 3 troços diferentes, o 1º ainda em serra a contornar Vigo e já dentro da cidade por uma belíssima mata ao longo de um rio, o 2º em meio urbano, que para mim é sempre mais duro, e o 3º pelo ‘caminho da água’ que decorre a meia encosta, sem grandes desníveis, parte por estrada secundária bem assinalada e parte por terra batida. Sobretudo neste último troço, muito longo, o caminho acaba por ser um pouco monótono e já só me apetecia amandar para o chão e fazer uma birra.
Sobretudo quando estamos em serra, desistir não é uma opção. É preciso descansar mas prosseguir até ao final da etapa e isso representa um puxar de limites, que também tem a sua importância.
Chegadas a Redondela, o albergue oficial estava lotado mas foi fácil encontrar alternativa. Acabámos por ficar no centro num pequeno hostal, com ar esotérico chamado ‘Consciência 33’ e gerido por uma Rosa Abreu. Nome português? Sim, pelo lado da mãe. Também o dono do Café Central onde a minha amiga foi levantar a mochila (optou pelo serviço de transporte de bagagem) era português. E terminámos a cantar os parabéns em português a um jovem de 29 anos que fazia anos, a convite da Rosa. Uma fatia de bolo, um copo de sidra e uma conversa com outro peregrino, mais velho que nós, inglês residente em Hong Kong, com quem a minha amiga esteve a recordar os tempos e os conhecimentos daquelas paragens.
O Camiño tem disto, põe-nos em contacto com esta roda gigante que é o mundo. E afinal somos todos tão semelhantes e diferentes. Tão gente.



 - Desafio Low-cost
Dormir e comer bem são as necessidades básicas das quais não abdico.
Apesar das necessidades de conforto serem muito variáveis, chego à conclusão que sou pouco exigente – basta-me uma cama razoável num quarto sossegado, uma casa de banho asseada, uma copa para tomar o pequeno-almoço e um tanque com estendal para passar por água e estender roupa - tudo isso os albergues oferecem.
Com a caderneta de peregrino, o custo de noite nos albergues oficiais é de €6,00. Quando estão esgotados, existe muita outra oferta, sendo que no máximo paguei €15,00 por quarto duplo ou pequena camarata de 4 pessoas, onde por vezes ficámos só nós as duas.
Mas se tem maiores exigências de hospedagem também não terá problemas.
A comida também é assunto fácil de resolver. Comemos em restaurante uma ou duas refeições por dia a preços justos. Procurámos comer produção local e de estação, cozinhados simples, acompanhados por umas taças de vinho branco da região ou sidra.
Não saímos dos albergues sem tomar um bom pequeno-almoço e um café (em algumas etapas a minha necessidade de café matinal fez-nos andar mais um quilómetro), levávamos sempre alguma coisa leve para comer durante as etapas (fruta fresca e seca, ovos cozidos, alguma coisa que sobrou do jantar anterior e foi transformada em sandes…), bebi muita água e ao jantar, comemos sempre bem e a preços simpáticos.
      

Na quinta etapa percorremos um percurso entre Redondela e Ponte Vedra que me pareceu fácil, com um grande troço feito por estrada romana em lindíssimos bosques de carvalho.
Nesta etapa eu já reconheci o caminho. Identifiquei alguns sítios, em especial os locais onde tinha feito paragens e lembrei-me de um maior cansaço e solidão.
Tinha dormido muito bem na noite anterior e a manhã estava fresca e ideal para caminhar.
Tomei nota de receitas de doces não convencionais que a minha amiga partilhou. É curioso ela dizer que nesta fase da vida privilegia o fazer, apesar de ter sido docente e ter uma vida intelectualmente muito ativa.
Percebo isso porque nesta altura do caminho a minha cabeça está quase desligada e o corpo ativado.
O albergue em Ponte Vedra é gigante e inclusivo. Tem um grupo de pessoas com deficiência que fazem o caminho em grupo com outras pessoas sem deficiência, todos em bicicleta, sendo umas adaptadas, em modelos extraordinários que eu nunca tinha visto. Tem também famílias, com crianças pequenas, que também ainda não tinha encontrado.

A sexta etapa, entre Ponte Vedra e Caldas dos Reis foi um pouco maior, embora sem dificuldades de registo. Conversámos sobre espiritualidade e religiosidade, sobre a culpa cristã e o espírito de sacrifício que nos aperta, mesmo quando temos consciência dele. Falámos da procura de algo que nos centre na nossa humanidade ligada com os outros e com a natureza, com os nossos lados solares e lunares, ou com as nossas qualidades e defeitos – o bem e o mal, como parte integrante de ser pessoa.
Já em Padrón, seguimos as indicações de duas peregrinas espanholas com quem estivemos à conversa enquanto demolhávamos os pés num tanque de aldeia e ficámos numa hostal sossegada e limpa.
A minha amiga lembrou-se, e bem, de perguntar num dos hotéis das termas (água quente não sulfurosa, muito parecida com a de Chaves) se era possível fazer uma sessão termal não estando alojadas no hotel.
Foi possível. Fomos à vez porque só ela é que tinha trazido bikini e pagámos €12 cada uma por uma retemperadora sessão de meia hora numa piscina com água termal, jacuzi e jactos de água que massajavam todo o corpo.
Foi um luxo acessível que me fez um bem imenso e me deixou retemperada.

-     - O que Levar?
Existe a possibilidade de ter a mochila transportada a um preço variável entre €5 e €7 por etapa. De qualquer maneira, para mim a opção foi por levar uma mochila leve e com os pertences muito bem escolhidos.
Um par de calçado suplente, pouca roupa, leve, de algodão, legings, uma toalha pequena, um páreo, roupa interior com destaque para um número razoável de meias que convém mudar com frequência, bolsa de higiene com embalagens pequenas, onde não pode faltar um creme hidratante com que se massaje várias vezes ao dia os pés e as pernas, um impermeável, cantil e uma lanterna pequena. Um pequeno caderno para notas e uns óculos de sol. Uma fita para prender cabelos desalinhados que não vêm cabeleireiro nem secador.
  


A sétima etapa, entre Caldas dos Reis e Padrón(terra da grande poetisa Rosália de Castro, contemporânea da nossa Florbela Espanca), foi suave e sem dificuldades de maior.
Inevitável pensar naquela frase – tanta casa sem gente e tanta gente sem casa…
Nesta travessia da Galiza percebe-se que foi uma terra onde a vida nem sempre foi fácil, onde muitos imigraram e onde as casas, em regra enormes, aparentam um valor simbólico na luta pelo sucesso. Mais ou menos conseguido. Com investimentos variáveis e marcas do tempo, nem sempre generoso. Algumas casas foram ocupadas pela natureza e davam sinais de desamor e abandono.Outras mostravam o investimento e a estima – O jardim está bonito, sim, mas dá-me tanto trabalho!respondeu-nos uma senhora
Pelo meio da etapa cruzámo-nos com pessoas que fazem pequenos troços do caminho, no contexto de  excursões e depois retomam os autocarros em pontos combinados. Destaco também a conversa com um Finlandês entradote que vinha a fazer o caminho desde Lisboa. Estava a adorar mas tinha saudades da família, em especial dos filhos e dos 4 netos, que queria trazer com ele num próximo caminho.
Almoçamos muito bem uma favada (feijoada) acompanhada por pimentos padron num daqueles sítios à beira da estrada com um restaurante e uma loja vende tudo.
Saímos pela primeira vez sem abastecimento porque era domingo e não encontrámos nada aberto. Ao longo do caminho, quebrei a regra de não ‘chinchar’ e comi figos, medronhos, tomates e maças. Nada me fez mal.
Entretanto, fomos construindo a ideia de fazer uma sopa, inspirada na portuguesa sopa da pedra, com o que o caminho nos dava – castanhas, uns vagens de feijão (uns frescos e outros maduros), um pimento vermelho, uma maçã e umas folhas de couve galega, apanhadas já perto do albergue de Padrón. No albergue, onde encontramos sempre coisas que outros peregrinos deixam, juntámos uma pitada de sal e um pouco de azeite, um bocadinho de gengibre e uma pitada de arroz. Estava uma delícia e encheu a cozinha de um belíssimo aroma. Seguindo o uso dos albergues, partilhamos a sopa com quem quis e estivemos a comer com um brasileiro que estava a fazer o caminho com familiares e amigos.

A oitava e última etapa de Padrón a Santiago foi a mais longa e talvez a menos interessante. 25 km por sítios nem sempre bonitos, com tantas subidas e descidas que se torna saturante. Geri sentimentos ambivalentes com a vontade e a pena de chegar a Santiago. Com mais tempo teria ido a Finisterra e descansaria um dia, mas desta vez não podia ser assim.
Antes das 9h já estávamos na rua prontas a caminhar e deitámo-nos já passavam das 23h, numa hostal em Santiago. Fizemos paragens muito simpáticas em cafés e roulotes ao longo do caminho que serviam de descanso, convívio e abastecimento. Para além do inevitável carimbo na caderneta.
À medida que nos aproximamos de Santiago aumentam os peregrinos, em grupo ou sózinhos e a conversa sobre os Caminhos. As jovens polacasque faziam troços do caminho a rezar em voz alta. O jovem casal russo que tinha uma ideia muito contestária do ponto atual da civilização ocidental. A velha senhora do Canadá que seguia mais devagar mas que tinha vindo desde Lisboa com uma energia que metia qualquer jovem num chinelo.Gente de todo o lado, como é costume e com um espírito de inter-ajuda e de incentivo ao outro.
Chegámos exautas a Santiago por volta das seis da tarde.  A cidade,  que vive dos peregrinos e da industria da fé, está tomada por homens de farda cinzenta, que não permitem entrar em lado nenhum com mochilas, que  estão à entrada da catedral e de outros monumentos e que, de repente, nos fazem sentir desajustadas. Mal vindas. Como se não fizéssemos parte do turismo desejável.
Enfrentámos a fila para receber a Compostela (discutindo com o homem cinzento que governava a fila e cuidava para que as mochilas não entrassem), a minha amiga foi buscar a mochila ao Seminário de Santiago Maior (um hotel bastante luxuoso no centro da cidade) onde não tivemos vaga, tentámos perceber o horário dos comboios de regresso para Portugal, fomos à Catedral - e com isto era 20h, estávamos cansadas e carregadas e não tínhamos onde dormir.
Fomos salvas pelo encontro com a jovem russa que tínhamos conhecido no Freixo. Fizemos uma festa e ela indicou-nos o albergue onde estava, perto da estação – o que era simpático porque eu tinha decidido sair às 5 h da manhã (só saiam 2 comboios com transbordo para Portugal e o mais tardio, não tinha ligação do Porto para Lisboa). A minha amiga ficaria mais um dia em Santiago.
Atravessamos meia cidade para ir comer a um restaurante que lhe tinha recomendado e que, de facto, era muito agradável – espaço cuidado ao estilo rústico com charme, respirando cultura, ponto de encontro de intelectuais e artistas, galegos e portugueses. Só tive pena de estar tão cansada que não tirei todo o partido, mas ainda assim foi um belo e retemperador jantar.
De novo atravessámos meia cidade até ao hostal. Era acolhedor, limpo e simpático. Tomei banho e dormi 4 horas num sono só.


        
Desperta e cansada, apanhei o comboio às 05.15h para Vigo, ainda de noite.
Uma hora de espera em Vigo com um bom pequeno-almoço na estação e entretanto ficou dia. O comboio português parte às 9h e chegou ao Porto as 10,20h, hora portuguesa. O barulho do motor lembrava aquelas motos velhas que se deslocam em esforço. Na carruagem estão mais alguns peregrinos de regresso (reformados que, pela bagagem, fizeram o caminho na versão hotel), dois casais ingleses e um casal australiano. Conversam sobre o caminho, sobre a vida, sobre como gostam de Portugal, salientando a limpeza das terras e o acolhimento dos portugueses.
Vou distraída, dormito e estou pouco atenta à paisagem. Olho para fora de vez em quando e localizo algumas estações. S. Pedro da Torre. Viana do Castelo. Tamel. Midões. Nine. No Porto mudamos de comboio e entram muitos passageiros. Converso com uma jovem italiana que está a viver em Londres e viaja de visita a Portugal, bem documentada. Sai em Coimbra, depois de me ter pedido sugestões para visitar em Lisboa.
Chego às duas da tarde a Sta. Apolónia e atravesso com tranquilidade a cidade em obras até ao Cais do Sodré. Ainda paro no largo do município para beber uma limonada e fumar um cigarro.
Antes do Cais do Sodré sou abordada por uma senhora brasileira que olhou para a mochila com a Vieira de Peregrina e me perguntou se eu vinha do Caminho de Santiago. Acabada de chegar, digo-lhe eu.
- Oi moça, me conta tudo porque eu vou de viagem amanhã para fazer o Caminho de Tui a Santiago, pediu ela. E estive a conversar meia hora, partilhando as minhas experiências de peregrina.
Já no comboio suburbano lembro uma frase que estava grafitada numa parede à chegada a Santiago ‘O melhor do caminho é chegar a casa’.
Fiquei a pensar com sentimentos contraditórios. Parece-me que o tempo voou...


Isabel Passarinho


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