terça-feira, 30 de agosto de 2016

Crónica Social - Desacelerar

Só agora consegui ler os livros que comprei na última Feira do Livro de Lisboa. Finalmente dou-me tempo para livros de autores que quero conhecer melhor.
O último foi ‘A Hora da Estrela’ de Clarisse Lispector[1].
"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..."

Fim de tarde ventoso em Oeiras.
As pessoas arrastam-se no regresso da praia, cheios de chapéus-de-sol e sacos Pingo Doce. Chapéus ainda na cabeça, eles em tronco nu e elas com o fato de banho coberto por um pareo ou uma toalha, Crianças cansadas. Famílias de todas as cores, tamanhos e feitios. Velhos fingidos de mais novos. Pessoas sozinhas. Casalinhos jovens de corpos bem-feitos. Cães, geleiras, cadeiras e pranchas.
As bagageiras dos carros a substituírem bem os alforges dos cavalos ou dos burros de outrora. Com a bagageira aberta guardam-se sacos e outros artefactos, tiram-se os chinelos, calçam-se ténis e vestem-se t-shirts. Outros calçam patins.
Outros ainda, com ar de banho tomado, dirigem-se para a marcha no paredão.

Inevitavelmente no verão alteram-se comportamentos. Existem modos de viver de verão que estão disponíveis e parecem desejáveis.
O calor, o apelo da praia e das férias, os dias compridos, os artistas de rua, os caracóis e a imperial (para os muitos que gostam), os corpos mais à mostra, as férias escolares, a diminuição do trafego automóvel nos movimentos pendulares, os festivais, as noites quentes, as idas às terras de origem de família ou da família de amigos, os imigrantes que regressam para matar saudades, a circulação descontraída de visitantes estrangeiros… e tanto mais que a variação individual e de grupo social combinarem fazem do verão uma época especial.
Dizem por cá que o país vai a banhos e as instituições entram em slow motion.
Na verdade, é a Silly Season onde nada parece acontecer. Faltam notícias - podemos falar do bombardeamento televisivo das desinformações?- e fazem-se reportagens leves. Na agenda ficam as férias, as roupas, as relações amorosas das figuras públicas e pouco mais.
Poderíamos falar dos Jogos Olímpicos que acabaram de acontecer no Rio de Janeiro e que forneceram assunto para este tempo quente.
Podemos falar de quase tudo o que nos desinquieta. Podemos falar de quase tudo. Menos do imprevisível.

Na maioria das vezes são inevitáveis os comentários atmosféricos e lamentamos o tempo:
- Assim também não dá! Está muito calor.
Arrisco dizer que fazem parte da nossa identidade cultural as conversas sobre o tempo – tão uteis como quebra-gelo ou rampa de lançamento de outros assuntos.
Regra geral o tempo não cumpre. É objeto de descontentamento, está sempre mais (mais frio/quente, mais ventoso/abafado, …) do que o desejado. Mas mesmo quando é difícil encontrar-lhe defeitos ouvimos qualquer coisa do género:
- [Está um sol radioso] Este tempo não vai durar! Ouvi que chovia no final da semana.
As previsões atmosféricas amplamente consultadas e os alertas coloridos da proteção civil alimentam a paranoia - Cumpre-se uma espécie de fatalismo.
Onda de calor – entre 5 a 13 de agosto as regiões de Lisboa, Setúbal, Braga, Lousã e Anadia passaram por uma onda de calor”[2].
Não me parece que este fado-lamento tenha relação directa com as alterações climáticas que se verificam ao nível planetário. Suspeito que esteja mais relacionado com a necessidade de dar previsibilidade ao imprevisível.
Sabemos que as secas acontecem (sobretudo no sul e interior do nosso pequeno rectângulo), que as inundações chegam com as primeiras chuvas, que o verão é marcado pelo vento do lado sul da serra de Sintra e pelos fogos florestais criminosamente ateados. Sabemos que passamos mais frio no Inverno do que nos países com neve e que se continua a edificar em leito de cheia. Sabemos que não somos amigos da prevenção e acabamos por achar que qualquer acidente ou catástrofe podiam ser piores. São previsibilidades. Positivas ou negativos, mas apaziguadores.
Como nas relações gastas. Aborrecidas, tóxicas, dependentes, sofredoras mas conhecidas.

Sobressair em casa foi o título que Miguel Esteves Cardoso deu à sua crónica de 14 de Agosto[3].
Um elogio ao ficar.
“Para ficar em casa ajuda pensar na nossa casa como um destino, um lugar onde chegámos, que levou muito tempo a atingir. Basta lembrarmo-nos de todas as vezes, depois de uma viagem ou de um dia sem fim, em que entrar em casa foi um alívio, um princípio de paz.
A casa é um refúgio mesmo para quem quer fugir dela. Ficar também é uma viagem: é uma viagem contra o movimento que os nossos pés querem fazer. Ficar parado faz parte da dança. Ficar está para sair não como o silêncio para a música mas como a música que escolhemos ouvir está para aquela que é escolhida por uma multidão.
Só é bom ficarmos se soubermos que podemos a qualquer momento, sair. Há alturas em que não sabemos o que queremos fazer”.

Desperdiçamos demasiado tempo em corridas e rotinas vãs. Acelerar é fácil.
Exigente é  lembrar o que é verdadeiramente importante.



Isabel Passarinho


[1] Clarisse Lispector foi uma escritora brasileira de origem ucraniana que morreu com 57 anos (1920-1977) e deixou uma vasta obra.

[2] Revista Visão (p.20), 2016, 25 de agosto.

[3] Jornal Público

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