Soube hoje que o Sr. César e a D. Clementina passam
longos tempos na sua aldeia – a célebre Galveias, que é também título recente do
escritor José Luís Peixoto. Foi a filha destes vizinhos já velhotes que me
contou. Disse que a mãe, doente crónica e deprimida, ganhava vida por lá, à
conversa com as pessoas da aldeia e que o pai, já muito debilitado pela doença,
se sentia melhor e estava um pouco mais ativo.
Ela própria e o marido tinham tentado ir viver na
aldeia mas não correu bem, ele ficou sem emprego e tiveram que voltar.
- Quem
sabe se na segunda vez dá certo…, dizia-me ela antes de nos despedirmos.
Todos temos uma aldeia.
Existem várias no meu mapa afectivo. Por mais que
seja alfacinha nascida na Maternidade Alfredo da Costa e criada num lugar à
beira do Tejo, que nem uma aldeia era. Por mais que tenha crescido sem as
rotinas de ‘ir à terra’. Por mais que os meus pais não tivessem por hábito
visitar os parentes e amigos que ficaram nas aldeias de origem. Por mais que
tivesse crescido num tempo histórico em que as cidades e, em particular os
subúrbios de lisboa, começaram a ser urbanizados. E com essas casas e bairros
que cresciam em altura, crescia uma certa ideia de anonimato, de progresso, de
mobilidade social, de independência do controlo social típico das aldeias, com
o sonho de estilos de vida urbanos mais próximos das grandes capitais europeias
e mundiais dos países tidos como desenvolvidos – ganhava terreno o
Individualismo exacerbado.
Nas décadas de 70 e 80 do século passado, as aldeias ficaram
conotadas com um certo ‘atraso’ que era necessário superar. Embora em
simultâneo e um pouco paradoxalmente, persistisse um sentimento de que era nas
aldeias que tinham ficado redutos essenciais de autenticidade.
Durante muitos anos ir para o campo, por oposição a ir para a
praia, significava descansar e ‘carregar baterias’ com uma noção mais ou menos
romanceada e idealista da vida rural. Como um postal. Ou uma opção menor. Identificada
com uma certa pobreza, um certo despojamento do que se acreditava ser o
desenvolvimento. Fazia-se turismo quanto muito. As aldeias eram pitorescas mas
não eram locais onde se desejasse viver.
Hoje é diferente. As aldeias estão na moda.
Infiltra-se em todo o lado a necessidade de êxodo urbano. Por
moda ou por argumentos vários, cultivam-se hortas, fazem-se passeios pedestres,
participa-se na vida cívica e cultural.
Nas aldeias fazem-se projectos inovadores. É lá que se
experimentam movimentos, que se agregam pessoas. É para lá que vão viver
estrangeiros e nacionais esclarecidos. É por lá que circulam capitais culturais
diferenciados. É lá que se escapa ao estilo de vida dominante e se constroem
tecidos sociais novos. Mas ainda não é um movimento demográfico ao contrário.
Onde é que me sinto verdadeiramente em casa?
É na aldeia que estão as minhas raízes. Por mais que no meu
caso sejam raízes aéreas.
Como eu não sou uma árvore, posso enraizar em vários sítios. Uma
teia de aldeias, um rizoma com muitas ramificações.
Os meus pais eram migrantes rurais da zona Oeste, com as suas
aldeias bem identificadas nos afectos, nas maneiras de ser e nas convicções. Só
mais tarde, já eu era mãe, é que regressei à aldeia do meu pai. Onde tínhamos
casa e por onde, durante duas décadas, organizámos uma transumância de Verão
que alimentava a força anímica da minha mãe e servia de resposta familiar nas
férias escolares dos meus filhos.
Na minha juventude fui adoptada pela aldeia de uma amiga
perto da serra da Lousã. Foi lá que aprendi a lavar roupa na levada que vinha
da serra, a falar com sotaque, a gostar de broa feita em forno caseiro, a comer
almece, a colher milho, a perceber as famílias grandes e alargadas, a ir aos
bailes de aldeia e a lidar com a censura social. Na Suíça, vivi também numa
aldeia num ano de 1979 em que o meu mundo ficou muito maior.
Cresci e vivo na quase aldeia chamada Caxias. Vivi duas
décadas noutra aldeia próxima chamada Barcarena. Nasci, trabalhei e estudei em
Lisboa e percebi que é uma cidade com muitas aldeias dentro. Fiz parte de
socializações nos diferentes trabalhos muito semelhantes à vida de aldeia.
Em todas estas aldeias lancei raízes e estes territórios fazem
parte da minha história.
Num mundo globalizado é importante reconhecer a nossa
família, que pode ser de sangue e afectos e o nosso território pode ser formado
por uma teia de espaços; e talvez até por lugares entre esses espaços.
Na verdade tenho muita facilidade de me sentir bem nas
aldeias dos outros. E não consigo eleger só uma das minhas aldeias. São lugares
que me fazem sentir saudades quando não estou lá. Lugares de muitas
referências. Lugares de vivências, de memórias e sonhos. Se aumentar a lente, a
minha aldeia pode ser Portugal. Pode ser o planeta Terra.
A minha aldeia é feita de muitos habitantes. De caras
conhecidas e desconhecidas, de pessoas que fazem parte da minha vida e de
outras de quem nada sei. Pessoas que dão raízes e pessoas que não se prendem. Neste
meu tempo de vida e de inscrição histórica, a alma de viajante seduz-se também
pela ideia de ser hortelã. Eu sei que não combina. Mas não me sinto obrigada à
coerência e descobri que podemos ter projetos ‘por enquanto’. Ainda
sinto o dilema de apelos muito diferentes e não sei se quero decidir onde será
a minha aldeia.
Eu Sou do
Tamanho do que Vejo
Da minha aldeia veio quanto da terra se
pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Alberto Caeiro, in "O Guardador
de Rebanhos - Poema VII"
Heterónimo de Fernando Pessoa
Isabel Passarinho