Cronica 7 – A pé é tudo muito longe
Dia 8 – Barro/Caldas dos Reis
Fiz uma etapa de
aproximadamente 14 Km até Caldas dos Reis, num percurso por San Mauro, Rio
Agra e Briallos. A estrada romana segue pelo meio dos campos, quase sempre em
trajetos planos – o que também tem um efeito restabelecedor (…ainda acuso o
desgaste da etapa de ontem nos pés e na anca).
Este traçado
silvestre, alterna depois com a passagem por muitas aldeias e pelas suas zonas
circundantes com os campos mais cultivados, alternando com zonas florestadas. Dormi bem – o tempo
refrescou e a camarata tinha menos pessoas, o que também favoreceu a noite
retemperadora. A cereja em cima do bolo foi haver pequeno-almoço; o inesperado
‘presente’ soube mesmo muito bem e acabei por deixar registado o meu agrado no
livro do albergue.
Fig 2: Caldas de Reis |
Na primeira parte do
caminho não se vê vivalma, nem peregrinos, nem locais nem um café. Omnipresentes só os
corvos/gralhas com o seu piar um pouco lúgubre… Provavelmente a maior
parte dos peregrinos ficou em Pontevedra o que me deu um avanço de
aproximadamente 10Km. Já a manhã ia bem adiantada quando passaram por mim os
primeiros peregrinos ‘conhecidos’, o homem com ar de segurança e a mulher mais
velha, os 3 homens língua-de-trapos que me ajeitaram a vieira, o companheiro
gnomo da Alice de Málaga sem ela e dois jovens que me pareceram do leste
europeu… [Eram lindos de
morrer, umas verdadeiras obras da arte. Soube mais à frente, quando finalmente
encontrei um café onde eles também foram, que um é Arménio e fala italiano e o
outro é russo e fala razoavelmente bem o espanhol]
Diverti-me com o ar
espantado com que alguns peregrinos ‘conhecidos’ olhavam para mim nos primeiros
encontros, provavelmente surpresos por me encontrarem à frente (normalmente
fico para trás porque vou em passo mais lento e descanso muito) e fantasiei que
se lembravam da história da lebre e da tartaruga.
Ao mesmo tempo,
gostei que esta etapa fosse mais solitária - cruzei –me com pouca gente e os
habitantes locais estavam ocupados, sobretudo a trabalhar nos campos, não dando
muitas vezes pela minha passagem – o que não mau. Sentia-me desconfortável com
a indumentária (as calças da Quetcha não secaram e vesti umas legings pretas,
tinha umas botas de cabedal curtas cobertas de pó, uma t-shirt branca comprida,
um casaco polar cinzento e uma echarpe lilás – imagine-se esta indumentária
numa estrutura baixa e rechonchuda …) e apetecia-me ser invisível [ou transparente,
como dizia uma professora deprimida].
A questão do
«embrulho» tem a sua importância. Se é verdade que viajar com o mínimo de
bagagem obriga a um maior despojamento, também tem sido verdade que às vezes é
despojamento a mais. Apesar de estar lavada e de estar numa rota de peregrinos
senti-me, em algumas circunstâncias, com ar de pessoa sem-abrigo. Claro que isto são
tudo inseguranças e estereótipos; mas pensei muito na importância que se
atribui às aparências e à leitura superficial dos outros, nos julgamentos,
naquele jeito provinciano de ser … Tenho pensado também
nas minhas certezas e nas respostas que arranjo para mim e para explicar os
outros; na importância de manter espaço para o espanto, deixando em aberto
algumas questões como as que aparentemente surgem como coincidências.
Hoje, tive alguns
‘dejá vu’ com lugares e pessoas: passei por duas pequenas aldeias seguidas com
os nomes de S. Sebastião e S. Amaro que me lembraram outras duas com os mesmos
nomes em Penela (será que estes dois santos andam sempre de carreirinha?) e por
algumas mulheres com uma fisionomia particular (com uma pele muito fina e
branca, cabelos loiros escuros ou arruivados bastante lisos e fortes e as
estruturas sólidas das mulheres viking) que me lembraram a mãe de uma amiga que
foi muito importante na minha adolescência.
Achei curioso…
Após três horas de
caminhada, sem café e sem tabaco, comecei a ressacar. Se tivesse juízo, não
voltava a comprar tabaco mas provavelmente não tenho. [Tenho fumado pouco,
mas achei que era muito sacrifício eliminar o tabaco, por isso sai de Lisboa
com um maço quase cheio e em Valença comprei outro maço, que durou até agora] Estou instalada no
albergue em Caldas dos Reis - chama-se D. Urraca e à frente tem uma casa
comercial brasileira - não podiam ser referências mais familiares.
O albergue tem o
necessário mas está em instalações provisórias e não oferece aquelas boas
condições dos edifícios requalificados ainda com ar de novo; mas tem uma
excelente localização e uma envolvente magnífica. Caldas dos Reis é uma
vila histórica, pequena e bonita (fazendo lembrar Chaves pelas águas termais
quentes ou Caldas da Rainha, pelo seu parque verde no meio da cidade).
Fig 3: Caldas de Reis |
Conheci no albergue
um casal de Boston, os dois muito magros e velhos (talvez na casa dos 70 e
muitos anos ou oitenta) mas cheios de energia e boa disposição que consolidaram
a minha convicção de que qualquer pessoa pode fazer o caminho, dependendo de
como se organiza para o fazer. E também a certeza de que o caminho não se faz
com os pés, faz-se com a cabeça, no sentido de que me parece determinante
a(s)motivação(ões) e a organização.
O que faz tanta gente
tão diferente neste Caminho?
Procuram-se? Fazem
penitências? Promessas? Passeiam? Testam-se? Procuram respostas?
Na longa tarde que
vai desde a altura em que me instalo no albergue até ir dormir existe tempo
para tudo (até para achar difícil passar o tempo): tempo para tomar duche,
fazer uma sesta, para lavar e estender roupa, para dar uma volta pela vila,
para ficar sentada a apanhar sol nos bancos de pedra ao lado da ponte romana
(um cenário lindo) olhando as águas límpidas do rio, para fazer o abastecimento
utilitário para hoje e para a viagem de amanhã (privilegiei uma pequena
mercearia tradicional), para escrever, para ler, para pensar. [ … não sei se tenho
grandes pensamentos neste caminho, ou sequer se deveria tê-los, mas estas novas
rotinas favorecem que pense, alternando com os períodos de maior cansaço em que
não penso em nada e parece que esvazio a cabeça].
O tempo ameaça chover
e está a ficar mais frio, à medida que a tarde avança. Fui para o albergue
beber chocolate quente (lembro-me sempre da minha mãe quando bebo chocolate
quente), rever a rota de amanhã e ler um bocadinho antes de adormecer. [Os planos de me
deitar mais cedo não resultaram em dormir logo porque a minha cama estava
alinhada com uma maldita luz florescente e ficava na rota das casas de banho.]
O que é a solidão?
Estar sozinha ou sentir que se está sozinha?
Naquela leitura
quântica ‘estar sozinha’ é uma impossibilidade técnica dado que todos estamos
energeticamente ligados…então, porque é que a solidão mete tanto medo?! Talvez seja sobretudo
o medo da perda ou afastamento de quem nos é querido e importante, ou o medo de
ficar parada nas perdas, de não seguir viagem… A pé é tudo muito
longe mas como diz o poeta ‘o caminho faz-se caminhando…’ Lembro-me das gralhas. Não me sinto nada
‘iluminada’ (deveria estar?) quanto aos meus dilemas, mas tenho retirado muito
lixo da cabeça. Espero conseguir chegar ao fim.
Isabel Passarinho
(continua...)
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