Cronica 8 – Agradecer
Dia 9 – Caldas dos Reis/Padron
Ontem temi a chuva
mas a madrugada estava bonita e até aqui foi uma festa para os sentidos,
caminhar por bosques, ao lado de rios de leitos suaves, com vegetação tenra e
frondosa, a ver a luz da alvorada nos prados numa sucessão de pequenos lugares: Lavandeira, Rego dos Fornos, Santa Marina de Carracedo, Gorgillon,
Casalderrique. Já fiz uns bons
quilómetros. São 9h em Portugal e
10h em Espanha.
Parei um pouco
retirada do Caminho para fazer uma necessidade fisiológica e na volta,
aproveitei para fumar um cigarro e escrever um pouco. Depois passei para a
estrada nacional e perdi-me das setas, mais uma vez. Quando achei que já
era caminho a mais em estrada, entrei num café e a senhora deu-me indicações
para voltar ao caminho que passava quase ao lado. [Se me lembrar das
vezes em que me perdi associo sempre a estes malditos troços de estrada
nacional. Circular a pé por esta estrada faz parecer que os carros viajam em
teletransporte dando uma noção de velocidade completamente diferente da que se
tem ao volante de um carro].
Confiro o restante
itinerário do caminho que passa duas serras altas e três rios (Bermana, Valga e
Vila): Casal de Eirigo, Pino, San Miguel de Valga, Fontelo, Condile, Infesta,
Herbon, Pontecesures e Padron. Acabei de descer uma das serras, passando
sempre por dentro de bosques frondosos e cheios de sombra, com árvores
seculares - o percurso era tão intensamente belo que me comoveu e senti-me
verdadeiramente agradecida: à vida que me permite ter esta experiência, ao
planeta, aos homens que ainda não estragaram tudo, aos romanos que fizeram esta
estrada e a todos os que têm preservado este caminho. Agradeci também a todos
que tenho encontrado, peregrinos e habitantes locais, pelo ânimo, pelo
incentivo e pelo espírito positivo que me permitiu confiar na minha capacidade
de fazer o caminho.
Este sentimento de
gratidão é algo que eu aprendi a reconhecer e que se manifesta sobretudo na
contemplação de espaços naturais. Não é nada religioso, pensado ou planeado. É
apenas um sentimento que se instala e me faz agradecer. Cheguei ao albergue
por volta das 13h espanholas. Está muito bem equipado e fica num edifico
antigo, recuperado a preceito e situado ao lado de uma Igreja imponente (Igreja
del Carmen) e de um convento.
Fig 2: Padron |
Fiz as rotinas do
costume e fui dar uma volta pela vila – outra terra bonita, com um troço de rio
reto que a atravessa e uma zona histórica bem preservada. A minha intenção era compensar-me
do esforço da caminhada comendo um Kebab com batatas fritas numa esplanada que
tinha visto ao chegar, mas o estabelecimento estava fechado e só reabria às
18h. Fui passear sem
grande vontade. Muito comércio estava fechado pelo horário de sesta mas também
se notavam os sinais da crise, como por cá. Sem disposição,
passei por um supermercado para abastecimento.
Regressei ao albergue
e comi sozinha, uma tortilha e fruta. Depois voltei a sair.
Também não me apetece dormir.
Arrasto-me de sítio
para sítio, do sol para a sombra, da sombra para o sol mas não estou bem em
lugar nenhum. Estou inquieta. Desde ontem à noite
que tenho a cabeça cheia de aborrecimentos pessoais, que chegaram pelo
telefone. Deixei para trás alguns problemas familiares e outros, coloquei-os
entre aspas na esperança de que encontre formas novas de lidar com eles ou que
deixem de me importar.
Quando eram 6 e tal
da tarde rumei ao kebab mas em terra de marisco foi uma opção menor. Soube-me bem, estava
bom, ainda conversei com o gnomo que passou na esplanada mas quando cheguei ao
albergue, o cheiro que vinha da cozinha era muito tentador: dois portugueses
jovens fizeram arroz de marisco e as 3 mulheres magríssimas de leste tinham um
verdadeiro banquete, com uma cataplana de mariscos, uma salada e muitas frutas. É nestas alturas que
eu lamento ser «bicho-do-mato» e ganhar peso com facilidade. A primeira
característica impediu-me de meter conversa com os conterrâneos e partilhar o
jantar deles e a segunda fez-me olhar com uma certa inveja para aquelas 3 almas
de leste estão sempre a comer e são escandalosamente magras. Não me parece nada
justo!
Fui assistir à missa
na tal igreja monumental que ficava ao lado do albergue. Meio por acaso. Estava a apreciar a
vista fantástica do átrio frontal quando percebi que a porta estava aberta.
Entrei, apreciei a igreja e acabei por ficar na missa. Estavam poucas
pessoas e algumas eram peregrinas. O padre era velhote e eu não percebia tudo o
que ele dizia. Aproveitei o ambiente e pensei em mim, na vida e nos outros que
me povoam os afetos. Acabou por ser um momento de meditação e paz interior que
me soube muito bem. Na saída, olho para o
cruzeiro ao pé do albergue com uma virgem e um menino (as cruzes dos cruzeiros
no Caminho estão cheias de figuras de pedra) e penso na maternidade, essa
condição simultaneamente fabulosa e ‘incurável’ que nos faz passar pelas maiores
alegrias e também por dores muito profundas…e penso também em como seria bom se
existissem milagres. Vou dormir.
Fig 3: Albergue de Padrón |
Antes de adormecer
ainda ouço algumas despedidas entre peregrinos mais jovens que se conheceram no
Caminho. E sinto a nostalgia de estar quase a terminar – amanhã será a última
etapa. Mas não me sinto capaz de balanços.
Isabel Passarinho
(continua...)
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