Cronica 9 – O meu caminho e o caminho dos outros
Dia 10 –Padron/Santiago
Manhã fresca. Dormi
bem e acordei cheia de energia. Quando fui tomar o
pequeno-almoço na sala comum do albergue encontrei o gnomo. Deu-me um sonoro
‘bom dia!’, informou que depois de Santiago seguiria para Finisterra por uma
jornada de mais dois ou três dias. Pediu para tirar uma foto comigo. Perguntei-lhe sobre
os albergues até Santiago e ele mostrou-se conhecedor e preciso, sugerindo um
que ficava a cerca de 4km da cidade e um seminário em Santiago – despediu-se
desejando Bom caminõ!
Partilhei o meu
pequeno-almoço com as duas jovens de leste (as mesmas que ontem se despediam
com muita nostalgia de um belo moço português) – despedi-me delas desejando Bom
caminõ! Depois, quando saí, ainda de noite cerrada, outros peregrinos partilharam
comigo a luz das lanternas para iluminar o caminho até amanhecer. Quando começou
a clarear o dia aceleraram o passo (ou eu desacelerei) e desejaram Bom caminõ!
A primeira paragem
foi feita após 6 Km num café em Esclavitud (que raio de nome para uma terra)
onde já estavam vários peregrinos. Entrei com a Sílvia, de Madrid, que tinha
encontrado um pouco antes e que me disse que estava aflita com bolhas nos pés.
Encontrei também as 3 fininhas de leste (afinal eram da Estónia) que comem como
ursos e que já estavam no café; vieram pedir para tirar fotos connosco porque
queriam ficar com uma recordação. Estive um pouco à
conversa com a Sílvia que me disse que não sabia se conseguia chegar a pé a
Santiago mas ia voltar para Madrid de avião porque a Ibéria tinha um desconto
significativo para peregrinos e bastava apresentar a credencial. Nesta altura
ainda não tinha decidido como voltaria para casa e fiquei a pensar na
possibilidade de voltar de avião, mas não me preocupei muito, de avião, de
autocarro ou de comboio, logo veria. Na saída do café retardei o passo para acompanhar a
espanhola até entrar na imponente igreja de Esclavitud.
[Não tenho ligado
muito aos carimbos da caderneta de peregrino e só ali é que percebi que os
peregrinos também vão carimbar nas igrejas. Até ali carimbei apenas nos
albergues, em alguns cafés de que gostei mais e ontem fui carimbada por uma
brigada da proteção civil que encontrei pelo caminho]
Depois de sairmos da
igreja deixei-me ficar a acompanhar a Sílvia que andava a muito custo. Mas ela
própria me pediu para seguir ao meu passo reforçando o que se diz por aqui, que
‘cada um faz o seu caminho’. Apesar de me fazer
sentido é uma postura nova para mim e fico a pensar no meu caminho e no caminho
de outros. Tenho ainda aquela coisa entranhada de «ajudar». Mas, bem vistas as
coisas, cada um faz mesmo o seu caminho. Embora isso não seja
entendido como um ato individualista ou egoísta, é um caminho em interação, só
que realmente é de cada um, é a metáfora da vida de cada um – no meu caso não
gostaria que alguém traçasse o caminho para mim, abdicasse do seu caminho para
fazer o meu (ou me pedisse o inverso) ou me dissesse em que passo o deveria
fazer.
Pelo caminho paro
muito. Sempre que me sinto
cansada e encontro um lugar simpático, paro. Quando me apetece petisco qualquer
coisa (normalmente fruta fresca ou seca) ou escrevo. Em algumas paragens
descalço-me, tiro as meias, ponho creme nos pés e deixo-os arejar. Depois ponho
meias lavadas, volto a calçar-me e aguento mais um troço.[Estes pequenos cuidados,
muito creme hidratante e a alternância entre dois pares de calçado têm sido as
técnicas usadas para evitar ter bolhas nos pés e até agora tem resultado a
100%]
Fig 2: A caminho de Santiago de Compostela |
Quando iniciei esta
etapa pensei ficar no albergue que o gnomo me tinha indicado a cerca de 4Km de
Santiago e chegar à cidade amanhã, mais fresca e descansada. Mas fui andando,
andando e começando a ficar muito cansada, ligo o piloto automático e deixo de
raciocinar. Vi algumas indicações
de albergues pelo caminho mas como implicavam desvios, não liguei e foi
prosseguindo. São 24 Km nesta
etapa, num percurso nem sempre fácil e com várias subidas acentuadas, em
especial na aproximação à cidade de Santiago.
Passei Milladoiro, a
primeira localidade verdadeiramente suburbana que encontrei, sem graça,
cinzenta, com os arruamentos em obras, com grandes aglomerados- dormitório,
espaços comerciais, um polidesportivo, um grande infantário modernaço (com
movimento de saída de crianças a chorar como leitões para a matança, arrastadas
por mães gordas e sem paciência - o eco
daqueles choros ficaram-me na cabeça durante muito tempo). Pouco depois desta
localidade, avista-se Santiago.
O momento foi
partilhado, por acaso (suponho eu) com as fininhas da Estónia que gritaram,
bateram palmas e tiraram fotografias. Mas depois do avistamento onde a cidade
aparece relativamente perto, o caminho dá voltas e mais voltas num trajeto
sinuoso até chegar finalmente ao centro da cidade.
É particularmente
difícil a subida para a cidade, por estradas e depois, por ruas que parecem não
ter fim. Fiquei com a sensação de que a entrada se faz pelo lado de trás da
cidade porque não se vê a catedral, nem o centro histórico. Ao mesmo tempo
soma-se o desconforto de entrar numa cidade a meio da tarde, suada, cansada, cheia
de pó e, provavelmente, a cheirar mal. Quando perdi as setas amarelas estava numa praça e não
sabia que direção tomar. Na dúvida e muito cansada, sentei-me numa esplanada e
pedi o de sempre: dois sumos de melocoton e um café solo.
Fig 3: Santiago de Compostela |
Aproveitei o descanso
para olhar em volta. O café com ar de bistrô francês chama-se Rosália Castro, a
escritora venerada por aqui (passei ao lado da sua casa-museu em Padrón). Foquei-me nas pessoas
que passavam: bem vestidas, apressadas, muitas com cara fechada e com olhar ausente,
como se fossem máquinas.
Estranhei. Durante o
caminho tinha-me habituado a ver a maioria das pessoas de caras abertas que
saudavam à passagem, esboçavam sorrisos e desejavam ‘bom caminho’. Quase me
esqueci que a vida era assim, cheia de dormências e de defesas para nos
entreter o tempo de vida em jogos de ‘papeis’ que não nos fazem felizes. Corridas
e aparências para lado nenhum. Na verdade «eu sou
mais campo» (como aquela private joke que diz ‘eu sou mais bolos») e preciso de
ir procurando alguns sentidos para a vida. Claro que, quando estou do outro
lado, ou seja, disfarçada de citadina, também devo ter o mesmo ar ausente e
alheado. O tempo ficou
enevoado e começou a cair uma chuva miudinha.
Perguntei ao jovem
empregado de mesa pela Catedral e pelo Seminário Menor, o albergue de que o
gnomo me falara, mas não me fiz entender e ele respondeu qualquer coisa, que eu
também não entendi. Quando a chuva parou
e eu me senti mais restabelecida pus-me a caminho. Á toa porque não voltei a
ver as setas, segui a intuição (ou lá o que seja) e fui dar com o Campus Universitário. É curioso não achar a
catedral numa cidade como esta e achar a universidade – dá que pensar. Talvez
porque a relação com o conhecimento tem maior peso na minha vida do que a
espiritualidade ou talvez por acaso. Sei lá.
Passei num parque
urbano com a sensação de que estava a dar uma volta redonda. Perguntei pela
catedral a uma senhora e ela deu-me a indicação. Estava perto. Mais
uns minutos e avistei-a – imponente. Impossível de passar despercebida. Afinal
tinha dado uma volta, por fora, ao centro histórico e não encontrei a
tradicional entrada do caminho português, a Porta Faxeira. Agora que estava
localizada, era preciso pensar em alojamento. O cansaço não permite grandes
buscas e opto por uma pensão que me parece com bom ar numa envolvente simpática
(31.00€ pela noite é um preço possível).
Fig 4: Catedral de Santiago |
Quase ao pé fica o
Instituto profissional de S. Clemente, numas instalações conventuais
recuperadas e pelos jovens que circulam nas imediações, deduzo que deve ser uma
escola profissional de segunda oportunidade para jovens com percursos mais difíceis. Penso no meu filho
G. e na sua relação desastrada (ou desastrosa) com a educação e nas
coincidências do que me surge no caminho – tenho a certeza de que, apesar do
traçado do Caminho Português ser só um, o caminho tem desafios diferentes
consoante as pessoas e cada peregrino fará as suas próprias associações e
interpretações.
Depois de um bom
banho e muito creme, deitei-me e adormeci. Acordei pelas cinco horas da tarde e
obriguei-me a ir à rua (se tivesse feito a vontade ao corpo teria ficado a
dormir). Começava a ficar
escuro e chuviscava. As ruas do centro
histórico estavam repletas de gente e muito animadas. Atuações musicais,
esplanadas cheias, gente de todo o mundo nesta cidade que é património da
humanidade e que faz por merecer a distinção, está cuidada, investida,
preparada para receber os visitantes. Fui à majestosa praça
da catedral, entrei na catedral e sai num registo de instantâneo fotográfico. Não
ia com uma intenção precisa, estava apenas a dar uma volta de reconhecimento
porque já não me lembrava da cidade e … encontrei o gnomo. Perguntou-me se
estava sozinha e se queria ir tomar algo com ele. Concordei e fomos andando por
aquelas ruas e conversando.
O gnomo é um expert (diz
que faz o caminho à 12 anos, que não liga à igreja e que é sobretudo para
treinar as pernas, para gerir o stress e para conhecer pessoas de todo o mundo)
e aconselhou-me logo a ir aos Serviços do Peregrino (habitualmente com filas de
várias horas) carimbar o passaporte e buscar a ‘Compostela’ – uma espécie de
certificado da viagem. Aproveitei o guia e
lá fui carimbar o Passaporte (é recomendado que seja carimbado em todas as
paragens do caminho) e receber a Compostela -passada apenas aos peregrinos que
tenham feito pelo menos 100 km a andar ou 200 Km de bicicleta ou a cavalo.
Depois escolhemos uma
esplanada numa artéria animada ao lado de um teatro e pedimos 2 copos de vinho
para fazer uma saúde – ele escolheu um Rioja muito agradável e nada caro (pagámos
apenas €2,00 cada um por um copo de balão bem fornecido). Brindámos ao caminho
e à vida, com o inevitável desejo de saúde para nós e para «os nossos».
O gnomo gosta de
falar: é um homem rústico, vive numa vila de montanha lá para os lados de
Alicante, numa terra cujo nome não fixei, que tem 2000 habitantes e onde toda a
gente se conhece. Planta a sua horta e, pelo que percebi, está reformado. Vai
prosseguir o caminho até Finisterra e de lá vai a Vigo ver um jogo de futebol –
conta que uma das estrelas da equipa é um jovem seu conterrâneo que lhe
ofereceu o bilhete para o jogo e que faz muito gosto, sobretudo porque gosta do
rapaz e enaltece-lhe as qualidades de não ficar envaidecido com o sucesso e
ajudar a família.
Este foi um dos encontros
improváveis que o caminho proporciona - não gosto de fazer perguntas sobre a
vida dos outros nem de falar de mim, por isso depois de trocarmos umas
generalidades, a conversa esgotou-se. Começou a chover com maior intensidade e despedimo-nos
com votos sinceros de continuação de bom caminho. Cada um seguiu em direções
opostas.
São 21h. Estou no
quarto de uma simpática pensão em Santiago de Compostela e antes de dormir
penso nesta aventura e no quanto ter feito o caminho me iluminou as ideias? Ou as
deixou mais claras? Ou ajudou a tomar decisões? O que é que eu ganhei com esta
viagem? Hoje está claro que o
meu projeto, qualquer que ele seja, tem de ter raízes em contexto rural e que
os velhos e os deficientes estão no meu caminho… mas isto eu já sabia. Pronto, não vou tirar
mais ilações… Estou cheia de sono.
Isabel Passarinho
(continua...)
Fantástico! Também quero!
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