Cronica 10 – O dia mais comprido
Dia 11 Santiago – Vigo- Porto –
Lisboa
O dia de hoje foi o
mais comprido e o mais cansativo de toda a viagem. Levantei-me por volta
das 8h de quinta-feira e cheguei a Lisboa um pouco antes das 6 da manhã do dia
seguinte, sexta-feira. Mas indo por partes,
arrisco três: i) a parte da manhã passada em Santiago, ii) a parte da viagem
até Vigo e iii) a parte de Vigo ao Porto e do Porto a Lisboa com a chegada a
casa.
Primeira parte – Em Santiago
Tomei um belo
pequeno-almoço na esplanada do café ao lado da pensão - adoro tomar um bom pequeno-almoço,
num sítio bonito, descansada e sem pressas. Deixei a mochila a
guardar na pensão e sai ligeira para dar uma volta pela cidade, ir à missa do
peregrino que acontece todos os dias na catedral ao meio dia e tratar das
questões práticas do regresso a casa (em que transporte, a que horas e a que
preço).
Santiago, agora à luz
do dia, é uma cidade bonita, enfeitada com muitas flores e muito bem cuidada.
Vive do turismo e faz por merecer o agrado de quem a visita. Coexistem centenas de
lojas de ‘recuerdos’ vulgares (caríssimos e mais ou menos industrializados e
desinteressantes) com lojas tradicionais de artigos muito bons e outras
inovadoras de design artístico (e preços ainda mais proibitivos). Também é
percetível um movimento artístico e cultural bem enraizado mas com novas
abordagens bem interessantes.
Fig 2: Santiago |
Viajar de mochila e
com um orçamento muito limitado também resolve o problema das lembranças para a
família e amigos – comprei o mínimo, umas fitas de Santiago tipo ‘senhor do bom
fim’ para algumas pessoas com quem quero partilhar este acontecimento e umas
pulseiras mais elaboradas com símbolos antigos para os mais chegados (em quase
nada ainda gastei mais do que gostaria).
Um dos momentos mais
bonitos que vivi neste passeio turístico por Santiago foi ficar a ouvir um
músico de rua que tocava acordéon. Sentei-me num degrau e fiquei parada a ouvir
a sua música nuns momentos que me lavaram a alma. Mais perto do
meio-dia aproximei-me da catedral. A praça monumental, estava cheia de gente.
Gente de todas as maneiras e feitios. Devoção, turismo, curiosidade…e aqueles
grupos patéticos de ‘turistas de pacote’ com as inevitáveis guias de
bandeirinha – deprimentes!
Entrei na catedral
deviam ser umas 11 e meia e, apesar da escala ser enorme, já estava apinhada. Os
confessionários em várias línguas estavam a funcionar em pleno. E as ‘relações
públicas’ da igreja viam-se ‘em palpos de aranha’ para arrumar as «ovelhas»,
algumas acabadas de chegar da peregrinação, ainda com as mochilas. Muita gente estaria
pelo pitoresco, pelo ritual, pelo espetáculo, outras pela devoção. Algumas
pessoas estavam em meditação, outras com expressão de sofrimento, algumas só
cansadas e outras atentas. Uns mais respeitosos do que outros.
Gente do mundo
inteiro reunida na Catedral. Que sei eu? Eu
própria tinha razões paradoxais para estar ali.
Gostei
particularmente das palavras da freira que iniciou a comunicação com o público
e resumiu a «coisa» a uma trilogia que me fez sentido e podia ser unificadora,
para além de qualquer catecismo: Fé, Esperança e Amor. Depois começou a cantar
com uma voz magnífica e não deixa de ser comovente ouvir um coro de 1000 vozes
entoando os cânticos. De resto, o ritual da
missa é normal. Saí na parte das hóstias.
Não fiz as rotas
turísticas de abraçar o santo, nem fui à tumba agradecer – já o tinha feito no
altar da natureza quando senti que era a hora e não me fazia sentido voltar a
fazê-lo por uma qualquer obrigação folclórica. Mas gostei de
participar naquele momento da missa e, de alguma maneira, marcar o fim do
Caminho, agradecendo pela possibilidade de o ter feito.
Segui para procurar
comer qualquer coisa e acabei por almoçar num restaurante muito bonito perto da
pensão. Ofereci-me uma refeição completa porque também já não me fazia sentido
continuar a comer aquelas sandes, com sumos e fruta que tinham constituído as
minhas refeições durante o caminho. Fui buscar a mochila
e segui em direção à estação de comboios que ficava relativamente perto
(entretanto, tinha decidido voltar de comboio porque é o transporte de que
gosto mais e ficava a um preço razoável).
Cheguei à estação um
pouco antes das 2h da tarde e apanhei um susto porque só vi destinos espanhóis.
Será que não havia comboios para Portugal? Fui às informações e
lá soube que teria que fazer o circuito Vigo-Porto-Lisboa. Comprei bilhete e
esperei pela partida às 16.29h. Os intervalos de
espera neste dia foram desesperantes mas estas primeiras duas horas até
serviram para descansar. Apesar da sensação um pouco amarga de que tinha
acabado a ‘festa’.
Segunda parte – Rewind do Caminho (viagem de comboio entre Santiago e
Vigo)
O troço entre
Santiago de Compostela e Vigo faz-se com conforto, num comboio do tipo TGV e
dura 1h e meia. O trajeto é quase paralelo ao Caminho e deu-me uma estranha
sensação de estar a rebobinar a cassete do que tinha vivido naqueles dias. Parecia que tinha
entrado num túnel do tempo e que estava em ‘rewind’ a olhar para aqueles locais
(a casa que parecia um castelinho, a igreja de Esclavitud, a casa de Rosália de
Castro, aquele bosque, os campos de milho, a estação de Padrón…). Foi quase
doloroso. Às páginas tantas,
deixei de olhar pela janela porque não gostei da sensação e concentrei-me nas
recordações ainda frescas que trazia do Caminho. Gostei de o fazer. Gostei
de o ter acabado. Gostei de ter gerido bem o esforço e de ter feito as pazes
com o meu corpo que se portou tão bem e de quem eu nem sempre cuido como devia. Gostei de ter passado
férias sozinha e de ter percebido que sou boa companhia. Gostei de me ter
atrevido a fazer algo diferente e que adiava há muito.
Gostei do ambiente
acolhedor do Caminho, da gentileza entre os peregrinos e das palavras de ânimo
e incentivo que ouvi por todo o lado. Pensei em muita coisa
mas nem tudo consigo alinhar agora. Sinto que as ‘ondas
de choque’ desta caminhada vão ecoar me mim por muito tempo e que provavelmente
daqui para a frente vão haver coisas que ganharão novos sentidos. Embora não tenha a
sensação que algumas pessoas descrevem de que ter feito o caminho lhes mudou a
vida. É verdade que fiz o Caminho como uma metáfora da vida e acho que fico com
a responsabilidade de não esquecer e prolongar «este espírito peregrino» pelo
resto dos meus dias, esteja onde estiver.
A estação de Vigo é
feia. Fica numa zona industrial e inóspita. Felizmente está sol. O intervalo entre
comboios é de quase duas horas, muito tempo de espera mas pouco tempo para dar
um passeio pela cidade, sobretudo quando se tem uma mochila às costas. Leio uma revista que
comprei, escrevo umas notas soltas, vou pedir para carregar o telemóvel no café
da estação (tem a bateria viciada e descarrega com facilidade, sobretudo depois
de o usar para tirar umas fotos) e fico a ver TV enquanto espero. Nestes locais,
a televisão ocupa um lugar estupidamente central.
Lá, como cá, notícias
da crise, manifestações de descontentamento, empobrecimento progressivo das
populações, cortes nas reformas, dramas pessoais – uma mãe com 6 filhos que se
suicidou aparentemente por dificuldades financeiras. Estas notícias fazem
disparar ‘o meu botão’ de Assistente Social entalado entre um compromisso com o
desenvolvimento das pessoas, uma empatia terapêutica, uma postura de ajuda à
realização do potencial de cada um e o lado do compromisso social com um modelo
de sociedade mais justa e mais respeitosa dos direitos humanos. Que não pode
ser esta sociedade neoliberal e capitalista em que estamos agora.
Revolta ou transição
pacífica? Conformidade ou dissidência? Adaptação ou reinvenção? Estas são
algumas das dualidades que ainda não consigo ultrapassar.
Terceira parte – De volta a casa (viagem de comboio entre Vigo, Porto e
Lisboa)
Fiz esta viagem entre
as oito da tarde com saída de Vigo já num velho comboio português, as 21.00,
hora a que cheguei à estação de Campanhã (Primeiro ainda pensei dormir a noite
no Porto mas fiz contas à vida e achei que era pouco tempo para o dinheiro que
iria gastar; por isso decidi seguir viagem até Lisboa), a longa espera de quase
5h em Campanhã e o regresso a Lisboa num comboio velho e tremeliquento.
A viagem de Vigo ao
Porto ainda foi simpática. Tinha ao meu lado uma família com crianças que se
fartaram de conversar e fazer jogos – de vez em quando não podia deixar de
sorrir com a traquinice das meninas. E uma hora passa num instante. Pude apreciar um belo
pôr-do-sol e o nascimento de uma enorme lua cheia que coincidiram com a
passagem do rio Minho. Depois, de Valença ao Porto passei por terras e
terrinhas com nomes inusitados que não conhecia mas já era noite e acabei por desligar
da paisagem e ficar a ler a minha revista.
Chegada a Campanhã
aguardava-me a pior espera do caminho: cinco longas horas. Fiz de tudo, comi,
andei de um lado para o outro, fui à casa de banho, fumei uns cigarritos, li as
revistas, fiz palavras cruzadas, olhei as pessoas, ouvi as conversas e
…desesperei. Quem me conhece sabe
que eu tenho hora de Cinderela, à meia-noite começo a transformar-me numa
abóbora – e foi isso que aconteceu, travei uma luta enorme com o sono e isso
cansou-me muito.
Fig 3: Ferrovia, Porto |
Só o bom vernáculo
nortenho que se ouvia por todo o lado (nas conversas dos taxistas parados em
frente da estação, na boca de uma rapariga tipo ‘top model de discoteca de
alterne para bimbos endinheirados’, na conversa de um senhor de meia-idade que
veio largar uma pré adolescente à estação, nas conversas de 3 jovens amigos com
ar de estudantes universitários que jogavam com os seus portáteis…) ajudou-me a
manter o estado de alerta.
No entanto, entre a
uma da manhã e as cinco e meia, que foi o período da viagem até Lisboa, já
estava em estado vegetativo. O comboio seguiu com pouca gente mas foram subindo
bastantes pessoas pelo caminho, sobretudo homens jovens que aproveitavam os
três bancos em linha e sem apoio de braços para se deitarem. Eu não me atrevi. Doíam-me as pernas da
imobilidade. Ainda me descalcei durante um período. Dormitei mas em modo
alerta. Comecei a achar que não cheirava muito bem (devia ser da roupa porque
tomei banho). Tive frio. Finalmente Lisboa.
Fig 4: Lisboa |
A S. tinha insistido
em vir-me buscar, se bem que eu lhe tenha dito que não valia a pena, que
poderia apanhar um táxi até Sete Rios onde tinha deixado o carro. Na chegada a Sta.
Apolónia estava um delicioso cheiro a bolos quentes no ar, apesar de não haver
nenhum café aberto. Da S., nem sombra (tinha adormecido e vinha a caminho). E pronto, lá estava
eu, sentada nas escadas da estação de Sta. Apolónia com mochila às costas, ar
de sem abrigo e meia bêbada de sono. A cidade estava
naquela transição entre as criaturas da noite e a alvorada, que trazia novas
criaturas para habitar o dia.
Chegou a minha boleia
e fomos comer qualquer coisa quente em Santos e meter a conversa em dia. Mas eu
estava exausta e sou fraca contadora de histórias. Preciso de dormir.
Preciso de recuperar desta direta. Preciso de processar lentamente esta viagem…
Muito bom Isabel, gostei muito. A forma como coloca as situações vivenciadas fazem-me sentir dentro da viagem.
ResponderEliminarPara o ano farei a minha viagem...Bom caminho