Cronica 3 – Ninguém está sozinho
Dia 4 – Rubiães/Valença
O despertador deu
sinal às 5h mas estava a dormir tão bem que fiquei deitada mais meia hora. Ainda me admiro como
consegui adormecer com o concerto de roncos de ontem, mas o cansaço deve ter
mandado mais e, provavelmente, até me juntei ao coro. Arranjei-me, arrumei
a mochila, tomei pequeno-almoço e sai eram quase 7h. Estava uma madrugada
bonita de um dia que se adivinhava de muito calor. Não sabia ainda se
faria a etapa até Valença ou até Tui, mas acabei por decidir ficar mais uma
noite do lado português. A etapa tem 18 Km, é maioritariamente plana e
tranquila, passando por Ponte Romana (1Km), S. Bento de Porta Aberta (5Km),
Gontomil, Fontoura (8Km), Paços, Tuído (15Km), Arão e Valença (18Km).
Sobretudo no percurso
mais matinal, o trajeto é quase todo feito pela estrada romana, por vales e à
beira de vários rios, ladeados de vegetação com cheiros incríveis e uma luz
meio enevoada cortada pelos primeiros raios de sol…de filme! A banda sonora era
constituída só pelo som da água a correr e pelo cantar de muitos pássaros
diferentes.
Este é uma terra de
abundança onde, por todo o lado, se sente a generosidade da natureza.
Mas também se percebe
que é uma terra da construção civil e que as casas são um valor maior do que a
sua própria funcionalidade. Existem muitas casas de mostrar, muitas também que
reinventam outras paragens e outros climas, muitas que ainda estão inacabadas,
outras que ainda lembram o sofrimento do dinheiro ganho para as construir…
O caminho, como a
vida, tem de tudo: também passei por uma extensa zona ardida recentemente, que
ainda cheirava a madeira e terra queimadas – foi uma sensação de angústia
passar pelo meio desta floresta ardida…E os últimos 2Km da etapa foram por meio
das aldeias já muito suburbanas e por estrada, sendo a entrada em Valença
alcançada por uma subida bastante difícil, sobretudo tendo em conta o calor.
Numa daquelas
paragens em que já me mandava para o lancil do passeio mais à sombra passou um
velhote na sua deslocação de aldeia, que me desejou ânimo, contando que já
tinha feito o Caminho 4 vezes e que faltava pouco para Valença – naquelas
circunstâncias estes incentivos espontâneos têm um imenso valor.
Cheguei a Valença,
mais propriamente ao Albergue de S. Teotónio (uma vivenda bonita com jardim, ao
lado do quartel dos bombeiros) eram 12.30h. – a etapa não foi difícil, mas eu
estou cansada a somar, por ontem e por hoje. Quando cheguei o
albergue estava fechado, um papel na porta informava que era municipal e só
abria às 13h mas estranhei sobretudo não estar ninguém – será que tinham ido
para Tui (são mais 4 Km) todos os peregrinos com quem me fui cruzando?
Passado pouco tempo
chegaram o francês fala-barato e o urso alemão, pousaram as mochilas e deram
conta de que a casa estava aberta pela entrada da sala que dava para o jardim.
O francês, que é veterano no Caminho (fez o Caminho Francês 10 vezes, embora
seja a primeira que faz o Caminho Português e logo a partir de Lisboa) informou
que o uso nos albergues é podermos pôr as mochilas em fila, por ordem, dentro
ou fora e, se estiver aberto, podemos utilizar a zona social (WC, cozinha,
sala, zona de lavagens); só não podermos subir para os quartos, enquanto não
dermos oficialmente entrada. Segui quem sabe e fiquei ‘esparramada’ no sofá da
sala, enquanto o alemão gritava de contente porque tinha conseguido aceder ao
hi-fi e o francês fala-barato inspecionava tudo e falava sozinho.
Passado pouco tempo
chegou a senhora que fazia o acolhimento, fui inscrever-me, carimbar a
caderneta de peregrina, pagar €5.00, receber o lençol e a fronha e subir aos
quartos-camarata. Fiz a cama, deitei-me
e adormeci logo por cima do saco-cama, mas o francês foi acordar-me por duas
vezes: a primeira, para perguntar se eu estava bem (estava, antes de ele me
acordar) e a segunda a convidar-me para ir comer salada de tomate com atum
(agradeci, mas disse que não tinha fome). Ao fim da segunda tentativa, já não
consegui dormir e decidi ir dar uma volta pelo centro da cidade.
A ideia que tinha de
Valença demorou bastante a encaixar, porque a cidade está muito diferente e as
autoestradas a descaracterizam, com os respetivos acessos e as inevitáveis rotundas. Do albergue ao centro
histórico é muito perto e a entrada na fortaleza faz-se pela Porta do Sol. Chocou-me que os
carros ainda circulem dentro da fortaleza (que está muito bem conservada do
ponto de vista dos edifícios e das praças e espaços ajardinados) e chocou-me
que 80% do comércio seja de roupa de casa (cozinha, cama e casa-de-banho) e os
outros 20% sejam cafés e restaurantes, mais ou menos vazios.
Fig 2: Vista aérea de Valença |
Até admito que os
vizinhos espanhóis gostem (e gastem o seu dinheiro) das roupas para casa mas
tanta oferta igual é desesperante. Que falta de imaginação! Não se vê uma
galeria de arte, uma loja menos convencional, artigos tradicionais ou um
bar/café alternativo, nada para além do mundo dos atoalhados e dos jogos de
cama.
Fui ver o rio Minho,
as muralhas com a sua forma estrelada e a vizinha Espanha do outro lado do rio,
com destaque para a cidade de Tui que se avista na outra margem, quase em
frente. Depois de dar uma volta pelo miolo histórico dentro da fortaleza,
deambulei pela parte nova da cidade e fui comprar uma revista e beber um café
numa esplanada.
Comecei a pensar que
tinha sido rude com o Francês fala-barato e que talvez fosse simpático fazer
jantar no albergue para comer com ele e com o urso alemão… Estava nestes
pensamentos quando sou interrompida pelo francês que também andava a passear:
pergunta se está tudo bem (eu devo estar com uma cara mesmo muito cansada) e se
não quero jantar com eles no albergue. Digo-lhe que sim e vamos às compras a um
supermercado ali perto.
O Serge (soube entretanto
o seu nome) deve ter uns 60 e muitos anos, bem conservados e enérgicos, é
casado, pai e avô babado e passa a vida a falar da sua família e amigos, numa
verborreia que nem sempre é fácil de seguir, mas parece boa pessoa. Está
reformado e foi militar. Como o urso alemão, que é muito mais novo, muito
calado, tem uns 2m metros de altura e outros tantos de largura, uma barba
cerrada que o faz parecer mais velho do que provavelmente é – Hans Joaquim, de
seu nome. Não se conheciam de
lado nenhum, encontraram-se em Valença e parecem amigos de longa data.
Fig 3: Albergue S. Teotónio, Valença |
Serão umas 6h da
tarde quando voltamos ao albergue. A cozinha ainda não tem ninguém o que é bom
para darmos início à confeção do jantar, já que depois é mais difícil a
competição pelo fogão e pela loiça que é escassa para o número de peregrinos.
Percebo que o Serge
quer ser o cozinheiro e não faço questão nenhuma de concorrer com ele. Meto-me a fazer umas
bruchetas para entrada com tomate picado, alho e cebola, colocando depois o
preparado em cima de metades de pão fresco, temperado com um pouco de azeite e
com um pedaço de atum por cima – ficou bonito e foi apreciado, o que me deixou
contente; foi apreciado inclusive pelo jovem italiano de Nápoles que falava um
inglês perfeito, estava a fazer o caminho com dois amigos e não tinha
encontrado o supermercado – ofereci-lhe uma das nossas bruchetas que ele comeu satisfeito.
[Esta oferta e
partilha de alimentos entre os peregrinos é comum. Suponho que também pela
razão prática de não se carregar o que sobra, ou se deixa no albergue (os
secos) ou se reparte, perguntando a quem está, se quer].
O Serge fez um arroz
branco para acompanhar um refogado de frutos do mar com tomate que também
estava muito bom. E o Hans trouxe um vinho verde para acompanhar que também não
era nada mau. Comemos melão de sobremesa. O alemão até estava comovido durante
a refeição, que lhe deve ter sabido muito bem.
Enquanto o jantar era
preparado, o albergue começou a encher e enquanto jantávamos já havia muita
gente por todo o lado. Apesar da conversa à mesa ser interessante, pus-me a
reparar que parecíamos todos habitantes marcados do planeta Quéchua, porque
todos tinham várias etiquetas desta marca de vestuário e equipamento desportivo
– a globalização tem destas coisas…
Uma das exceções à
massificação da marca era um homem mais velho que apareceu no final do nosso
jantar, com um cabelo comprido grisalho, magro e que dava nas vistas sobretudo
pela t-shirt feminina que vestia, muito garrida e com flores. Não percebi a
nacionalidade mas falava várias línguas e ficou à conversa em francês com o
Serge fala-barato no final do jantar.
Entretanto, eu fui ao
computador da sala enviar uma mensagem porque não estava a conseguir fazer
chamadas. Fui rápida porque ainda estou traumatizada com o vírus que tomou
conta do meu outro endereço eletrónico e perguntei na receção porque não tinha
rede. A senhora foi muito
gentil, explicou-me que o problema era a operadora telefónica espanhola «entrar
por ali a dentro» e ajudou-me a reconfigurar o telemóvel para continuar com a
rede portuguesa.
[Realmente, hoje as
fronteiras ainda são mais fictícias do que antes (mas ‘antes’ quando? As
fronteiras sempre foram convenções...)] Bom, falei com quem
queria falar e fiquei descansada.
Estava uma noite com
uma temperatura fantástica e uns raios de vermelho no céu já escuro. Muitas
pessoas estavam à conversa ou só a descansar no jardim. Eu fiquei a fumar um
cigarro sentada nas escadas. Ao lado estava um casal português (de Vila Franca
de Xira) que já vinha de regresso de Santiago. Estivemos um bom bocado à
conversa: conheciam bem o Sobral de Monte-Agraço, já tinham feito caminhadas
por lá, em algumas das quais eu também tenho participado e estavam inscritos
num grupo de caminhadas que me interessava conhecer melhor.
Um pouco antes das
10h da noite fui-me deitar. Antes de adormecer
pensava que por aqui ninguém está sozinho. Ou melhor, estamos e
não estamos, na medida em que cada um quiser (ou não) interagir com os outros –
o sentimento de solidão depende pouco de estarmos fisicamente sós ou
acompanhados.
Hoje foi um dia em
que muitos outros estiveram presentes, tanto aqueles que andam sempre comigo,
como estes conhecimentos de circunstância. No suposto que, mesmo em grupo, cada
um faz o seu Caminho, não deixa de ser surpreendente uma certa predisposição
para o respeito, para a gentileza e para a generosidade com o outro que se
sente por aqui. Que diferença de
humor em relação à noite anterior, em Rubiães!
Em Valença o ambiente
no albergue era tão bom que me foi fácil ir falando com várias pessoas, apesar
da minha característica timidez… E agradeço ao Serge ‘fala-barato’ (que não
voltei a ver) e ao ‘urso’ Hans o único jantar partilhado que fiz no caminho.
Isabel Passarinho
(continua...)
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