Aproveito também para agradecer à Isabel Passarinho por amavelmente ter cedido ao Opina - Espaço de Divulgação Cultural as presentes crónicas, de sua autoria. Dito isto, desejo-vos a melhor das leituras.
Às
5h da manhã estava a pé para arrumar tudo com calma e sair pela fresca.
Nuno Soares
Entendo os Caminhos
de Santiago como uma metáfora da vida.
Achei que precisava
desta viagem para eliminar ruido à minha volta e ouvir a minha voz, aquela voz
que vem do coração e ajuda a separar o essencial do acessório, que ajuda a
integrar pedaços descosidos e a projetar futuros.
Este ano fui fazer o
Caminho Português de Santiago a partir de Ponte de Lima – isso nada teria de
extraordinário se eu não fosse já um pouco ‘cota’ (53 anos) e se não fossem os
desafios presentes em todo o projeto: nunca tinha ido de férias sozinha; não
andava de mochila desde os meus 20 anos; nunca tinha andado tanto a pé (mais de
170 Km); nunca tinha dormido em albergues; não tenho uma preparação física
excecional e não tenho motivação religiosa.
Tanta novidade merece
que eu conte a história desta aventura -
e é o que me proponho em 10 crónicas mais ou menos caóticas e sem pretensões
literárias.
Partilhar a
experiência, no seu misto de viagem espiritual e de percurso reflexivo e
inspirador de muitas aprendizagens é muito mais do que dizer como se chega
Santiago; e, por mais que muitos aspetos desta viagem sejam indizíveis é sempre
uma superação.
Bom caminho!
Cronica 1 – Falsa partida
Dias 1 e 2 - Lisboa/Braga/Ponte de Lima (de camioneta)
12.00h - Falta
uma hora e meia para a camioneta. A sala de
espera do terminal rodoviário parece um formigueiro, com gente em trânsito,
pessoas de todas as cores e feitios que arrastam bagagens igualmente diversas. Cheguei
com muita antecedência, depois de fazer uma paragem numa superfície comercial
para comprar uma lanterna pequena e uma corda para atar o saco cama à mochila e
de ter conseguido encontrar um lugar grátis para estacionar o carro. [Estou a
ultrapassar a estranheza de circular com roupa desportiva e de mochila às
costas. Tenho ideia que as pessoas olham para mim. Deve ser pela idade. Será
menos frequente ver senhoras de 50 anos nestas andanças …ou sou eu que não
estou acostumada.]
Tinha
decidido quase de véspera fazer o caminho português. Nunca
parece o momento certo para fazer uma viagem destas e à semelhança das coisas
que não se podem levar, parece que se deixa tudo e todos para trás. Na decisão
pesou o preço da viagem e o grau de dificuldade, mas decidi uma semana antes,
não mais. Pelo contrário, a decisão de ir fazer o caminho de santiago foi
tomada com muita antecedência.
Era uma
vontade antiga que foi sendo adiada por circunstâncias da vida, por inércias e
medos e cujos contornos de motivação também se foram modificando, à medida que
eu própria também ia mudando – agora, não tinha nenhum bom argumento para não
ir. Talvez
seja este um dos aspetos que me parece essencial: tomar a decisão de ir;
depois, o resto vem por consequência, são detalhes técnicos. Tomar a decisão
verdadeiramente, implica um compromisso que cada um faz consigo próprio sobre o
que se propôs, onde não existe lugar para as boas desculpas.
Depois o
«como é que o vai fazer» é uma cadeia de decisões mais pequenas que se vão
colocando…mas é uma provação cumprir a decisão. Desde os fatores externos, como
a pressão que algumas pessoas mais próximas fizeram (que foi do ‘não vás!’ ao
‘sempre vais?’, à semana anterior à partida em que tive imenso trabalho e aos
aborrecimentos causados por um endereço de email pirateado), até aos fatores
internos, como os medos e as dúvidas que me assaltaram. A preparação da saída é
muito mais do que fazer a mochila e, nem isso foi fácil.
Na mochila
(emprestada, porque achei que não seria o caso de fazer investimento porque habitualmente
não utilizo) consegui colocar o que pensei levar, mais os receios ‘não sei se
aguento’, ‘vai doer-me a solidão?’, ‘e, se for roubada?’, ‘e se chove?’…
Foi
decisivo ter começado a dizer a toda a gente com 2 meses de antecedência que
iria fazer o Caminho. Partilhar esta informação, significou ao mesmo tempo um
reforço da ideia de ir e uma oportunidade de conhecer alguns dos mitos que
estão associados ao caminho: ‘também
gostava muito, mas…’, ‘é muito difícil, não estou preparada’, ‘é uma promessa?’,
‘com quem vais?’, ‘não tens medo?’, …
No caso,
tenho 53 anos, os filhos estão criados, os meus pais já faleceram, não tenho
dependentes a cargo (a não ser financeiramente) e podia meter duas semanas de
férias para realizar este projeto (que é low cost) e foi encarado como uma
espécie de teste-prenda a mim mesma. Sozinha?
Bom, fazer o caminho sozinha aconteceu, não foi propriamente uma escolha
deliberada. Não sou fã de excursões organizadas e dessa forma não o faria, mas
sobretudo não coincidiu em tempo que ninguém das minhas relações/afetos tivesse
tido a mesma vontade e possibilidade. E como tinha tomado a decisão de ir, fui.
13.30h –
Acabei de perder a única camioneta que havia para Ponte de Lima. Estava no
cais de embarque com 20 minutos de antecedência, sozinha, em pé. O autocarro
chegou à hora com poucas pessoas, parou por uns minutos para retirar as
bagagens, o motorista saiu e sem que eu tivesse visto entrou e partiu de
imediato sem ninguém.
Demorei um
bocado a perceber o que se tinha passado: primeiro pensei que o carro tinha ido
abastecer combustível mas depois, com o tempo a passar, percebi que o tinha
deixado escapar mesmo à frente do meu nariz. Danada,
fui à bilheteira confirmar o desaire e converter o bilhete para Braga. Para Ponte
de Lima só amanhã à mesma hora e perderia o dinheiro do bilhete, por isso
decidi ir para Braga (com saída às 15h) e depois logo verei o que se segue.
18.00h –
Vou de viagem rumo a Braga. Vou à
larga. Espreito um programa horrendo que passa na TV, olho a paisagem e vou
trocando mensagens com os meus mais próximos. Começo a
sentir o afastamento da minha zona de conforto. Quanto ao
ato falhado, começo a pensar ‘como e porquê’ é que isto me acontece. De vez em
quando protagonizo episódios destes, entre o ‘nonsense’ e uma certa falta de
prontidão, de excesso de contemplação, de ser pouco prática em algumas
ocasiões. [os
pensamentos introspetivos são interrompidos por uma certa agitação no
autocarro].
Já
chegámos a Braga? – é a pergunta repetida, muito repetida de um senhor que se
agita no banco, levanta-se e dirige a pergunta a cada passageiro à sua volta. O homem,
alto, magro, africano, relativamente novo, com uma deficiência mental evidente,
embarcou em Lisboa como eu, e desde Gaia pergunta ‘Já chegámos a Braga?’. Pergunta
alto e com tanta insistência que já todos lhe respondem. O Motorista tenta
acalmá-lo e diz que o avisa quando chegar a Braga. O homem diz que vai ver um
tio, que tem saudades, que é no Braga Shoping. São as passageiras
mais velhotas que melhor falam com ele, com bonomia e compreensão. O homem
continua a perguntar ‘ O BragaShoping é aqui, não é? É aqui? É aqui?’. Dá
sinais de estar inquieto, questiona os passageiros do lado, de frente e de
trás: ‘Não sabe onde é?’ O Braga Shoping é por aqui? Centro comercial, não é? Levanta-se
(é muito alto e curva-se para não rasar o teto do autocarro), vai para o pé do
motorista e continua com a mesma pergunta repetida, parecendo não ouvir o que
lhe dizem.
Estamos
ainda pouco habituados a conviver com a diferença e, em particular com a
deficiência, nos contextos habituais de vida mas esse também é um caminho que
está a ser feito.
20.00h –
Em Braga está um anoitecer lindo e um calor alentejano. Já não
cheguei a tempo de apanhar a última camioneta para Ponte de Lima, mas pedi os
horários e a partir das 8h de amanhã o transporte é frequente. Por hoje terei
de ficar em Braga.
Sai do
terminal e fui farejando a cidade (tenho um bom sentido de orientação) até ao
centro histórico – está muito mais bonito do que o que recordava de outras
passagens pela cidade. Passei por um hostal que me pareceu uma boa hipótese
para passar a noite.
Fui jantar
um bitoque adolescente que me carregou baterias e entretanto passou o mesmo
homem do autocarro. Continuava a perguntar a toda a gente onde era o
BragaShoping, mas tinha o olhar muito mais triste. Pelo visto, ninguém o
esperava no terminal. Um casal
jovem, deu-lhe indicações precisas e um cigarro que ele pediu. Depois seguiu
noutra direção…
De mochila
às costas, rumei ao hostal – €18,00 por noite em quarto com 4 camas – simpático
e bom para me habituar aos albergues. Casa IKEA,
bonita, prática, chave eletrónica para a porta do quarto, um gavetão no beliche
com os lençóis para fazer a cama. Todos os outros hospedados estão na casa dos
20 e o jovem da receção, também; devem estranhar a cota, mas são simpáticos. Depois de
me instalar e de tratar da higiene ainda fumo um cigarro na varanda, ao mesmo
tempo que faço palavras cuzadas e termino os telefonemas.
Dia 2 - 10h
Dormi bem,
apesar do calor. Como não
fiz grandes preparativos e a semana anterior e o próprio fim-de-semana foram ‘a
mil’, a passagem por Braga criou uma ‘almofada’ entre a minha vida acostumada e
o Caminho…vou-me habituando à ideia de ir caminhar e à mochila - de fato,
quando temos de carregar o que é nosso, a definição de essencial torna-se mais
estreita.Fiquei fã
do hostal que para meu espanto ainda tinha um excelente pequeno-almoço –
tomei-o numa mesa corrida cheia de jovens alemães. Depois fui
beber um café a sério numa das praças centrais e segui para o terminal
rodoviário. Para já mantenho os vícios: café e um cigarro, de vez em quando.
Segui
calmamente, a apreciar cada detalhe da cidade e ao passar nas lojas-bazar que ladeavam
a estação rodoviária veio-me à ideia esta coisa da identidade portuguesa que é
notória por uma série se símbolos, de tradições e de traços culturais. Na estação
rodoviária circulam velhos portugueses com sacos de compras, em circuitos
utilitários (suponho eu) e jovens estrangeiros de mochila, em viagem. Ainda não
sei o que vou fazer: se fico em Ponte de Lima mais uma noite ou se inicio a
caminhada hoje, pelo calor.
11.30h - Desta
vez apanhei o autocarro sem problemas. A carreira
entre Braga e Ponte de Lima serve sobretudo as populações locais nas suas
deslocações regulares e, ao contrário dos autocarros da rede expresso, passa
pelo meio das localidades. Transporta maioritariamente mulheres (incluindo a
motorista).
No
trajeto, destaque para Vila do Prado, uma terra muito bonita ao lado do rio
Cávado. Decorria a
feira semanal com grande movimento. As caixas
de cartão com furos apinham-se no chão do autocarro com piares apertadinhos e
quem sai faz votos de boa viagem aos passageiros que seguem. As senhoras
do banco da frente falam dos fogos. Têm uma pronúncia local acentuada e usam
expressões que não costumo ouvir.
[‘ E se a
bouça arde?’ pergunta uma. ‘ Vou juntar a lenha da leirinha lá de cima’, diz a
outra ‘tenho é que juntar água em casa... ‘bamos a ber’.] Mudam de
assunto para as eleições autárquicas: ‘É o Júlio que se candidata?’, para depois
concordarem que ‘não temos sorte com esta gente’. À medida
que me aproximo de Ponte de Lima vejo a primeira sinalização do Caminho de Santiago
mas ainda me sinto longe e cheia de tudo e de todos que preenchem a minha vida.
13.45h - Está
um calor abrasador. O terminal
de Ponte de Lima fica na parte nova da cidade e tive de ir até ao rio, seguindo
por instinto e parando nas sombras. Finalmente encontrei o centro histórico, o
rio e a ponte medieval de que me lembrava. A cidade tinha
estado em festa e ainda tinha os enfeites nas ruas e os carroceis na beira-rio. Descobri o
albergue sem muito esforço mas, como só abria às 17h, fiquei no café do lado a planear
o Caminho. Fiz umas pesquisas vadias, fiquei com umas ideias, imprimi umas
folhas com trajetos, etapas e dicas mas não planeei verdadeiramente.
[‘birou-se
para mim e tal e disse-me: o mijão do teu namorado. Caralho, não lhe permito
isso! Já não é a primeira vez que ele faz isto!...’ ] Enquanto
ouvia a conversa ralhada da moça do café (que acabou de se irritar com um
cliente e o presenteou com uma saraivada de asneiras em bom vernáculo) e olhava
para o seu namorado (um hippie-xunga com ar de quem não está habituado a
trabalhar), ouvia os planos do jovem casal que está de partida para trabalhar em
Paris. A mãe da
moça, grita da cozinha que lá há muito para ver. A moça está mais preocupada em
levar um termo de bom café português porque lhe disseram que o café de lá é
muito caro. No meio
desta conversa, os poucos clientes do café estão ‘pregados’ na tv, no AXN. A
centralidade da televisão nos cafés, uniformiza e evangeliza as pessoas sobre
estilos de vida desejáveis e formas de pensar, de vestir e de ter
relacionamentos.
Começam a
chegar peregrinos. Ao meu lado, na esplanada, sentam-se dois irlandeses, pai e
filho que já vêm a caminhar desde o Porto. O pai pergunta-me se sou peregrina,
digo-lhe que vou começar amanhã e ele remata que somos todos peregrinos entre a
igreja e o cemitério. Ficamos a conversar mais um pouco. Entretanto,
liga-me a P. e diz que vai contactar o irmão que mora em Ponte de Lima para me
mostrar a cidade. Digo-lhe que estou bem e que não é preciso, mas ela insiste e
é a cunhada quem se oferece para vir ter comigo
.
22.30h - Já
estou no Albergue mas tinha de vir à sala para escrever sobre esta noite. A S.,
a cunhada da minha amiga foi muito querida em vir fazer-me companhia e acabei
por jantar com ela, com o marido, a filha e uns amigos, numa noite memorável. Das 15h às
17h fiquei à conversa com ela (tem 28 anos, é pouco mais velha do que o meu
filho maior) como se nos conhecêssemos de longa data: falámos de memórias, de
pensamentos, de projetos e ela partilhou o gosto pela sua terra (as belezas
naturais e culturais, as lendas…) e o desgosto pela administração corrupta que
envolve explorações de granito e negociatas escuras. Adorei a maturidade e a
finura do seu pensamento critico tanto sobre as questões humanas, como de
cidadania ou sobre as questões ecológicas e ambientais.
Depois de
me inscrever no albergue – fui a primeira a chegar mas a última a dar entrada
porque dão prioridade a quem já vem a pé no caminho – voltei a sair e fui ter
com a S., o marido e um casal amigo – uma artística plástica e escritora
que é filha da terra e regressou depois de correr mundo e o seu companheiro,
brasileiro de S. Paulo e ativista social. À boa
maneira portuguesa, os amigos dos nossos amigos, nossos amigos são:
receberam-me como se fosse família, fomos às compras e jantámos em casa de um
dos casais, com uma bela música de Jazz em fundo e uma boa conversa. Um pouco
antes das 22h – a hora de entrada no Albergue é até às 10h da noite - fiz uma
saída de Cinderela, despedi-me e fui a correr pela vila até ao albergue,
acompanhada pela S., pelo marido e pela filhota.
O albergue
fica num palacete recuperado, é funcional e está bonito. Apesar de ser enorme,
está cheio de peregrinos de todas as idades e nacionalidades. Fico numa
grande camarata, no sótão. Está escuro, mas no meio tem um enorme janelão por
onde entram as luzes de Ponte de Lima refletidas sobre o rio; e, por onde
entram também as musicas dos carroceis que sobraram das festas da terra. Pensava
que não conseguia dormir, mas consegui; pelo menos, até acordar a meio da noite
com a sensação desagradável de estar a sangrar do nariz. Fui à casa de banho
resolver a situação e ainda voltei para descansar mais um bocado.
Isabel Passarinho
(continua...)
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