Cronica 2 – As setas amarelas são as nossas melhores
amigas
Dia 3 - Ponte de Lima / Rubiães
Esta é uma etapa de
19 Km, considerada difícil, em especial pelo troço de 4 Km na subida da serra
da Labruja. O Caminho passa por Sabadão (1Km), Arcozelo, Ponte de Geira,
Labruja (9Km), Cruz dos Matos (12 Km), Ponte de Agualonga, São Roque (17Km) e
Rubiães (19 Km). Em relação ao traçado
e à dificuldade é possível dividir esta etapa em 3 troços: o primeiro
serpenteia junto ao rio, com subidas suaves, quedas de água idílicas e pequenas
aldeias com os moradores ocupados a trabalhar nos campos ou a cortar lenha.
[Todos saúdam à
passagem dos peregrinos.]
Passamos por grandes
pedaços da estrada romana (Via romana XIX que ligava Astorga, nas Astúrias a
Braga) ainda em bom estado e andamos por baixo e ao lado de grandes viadutos
rodoviários - é como se estivéssemos a atravessar várias camadas de tempo, com
modos de vida muito diferentes que coexistem, sem se misturarem. Penso na
coragem das pessoas que vivem nestes sítios isolados…
O segundo troço do
caminho (que parece muito mais longo) é uma subida de serra quase a pique por
veredas íngremes cheia de pedregulhos. Fui fazendo bastantes paragens para
descansar e beber água, aproveitando as boas sombras. Usei o truque de me fixar
apenas nas pedras que pisava e evitar olhar para o horizonte do caminho que, no
caso, era devastador com a inclinação e a extensão das subidas. É uma prova de
resistência, a lembrar nas dificuldades da vida. O terceiro troço é a
descida da serra, que achei também muito difícil, sobretudo numa altura em que
eu já não comandava os pés.
Aprendi hoje que são
as setas amarelas que tornam possível fazer o Caminho. O esforço é de cada
pessoa mas são elas que fazem a diferença entre prosseguir, ou não. A mim, não
me seria possível fazer este trajeto se não estivesse bem assinalado. A humildade de estar
atenta aos sinais que a experiência dos outros traçou para nós, de confiar (e
de depender) mais neles do que nos palpites próprios, foi uma aprendizagem
exigente.
Parti do albergue de
Ponte de Lima um pouco antes das seis da manhã, ainda era de noite. Quando no
dia anterior tinha perguntado que direção devia tomar, a senhora disse-me que
era «por ali» apontando a direção, mas nem ela me detalhou o «ali», nem eu
perguntei mais. Meti-me pela estrada
que achei certa e toca a andar cheia de ânimo.
O ânimo começou a
esmorecer um pouco, quando da estrada secundária passei para uma nacional e
nada de sinalização do Caminho – pensava com os meus botões ‘…e dizem eles que
o Caminho está bem assinalado?! Só se for para quem é de cá’. Andei mais uns
quilómetros, a subir, e cheguei a um ponto em que me convenci do engano e que
teria de voltar para trás. [Percebi mais tarde
que deveria ter tomado o que me pareceu um caminho rural sem saída
imediatamente contíguo ao edifício do albergue que seguia pelo vale e com isso
teria poupado cerca de 3 Km].
Antes de me por a
caminho de volta ao ponto de partida fui ver o meu caderno de notas para
verificar o nome das terras intermédias da etapa e dei com Arcozelo, cujo nome
já tinha visto assinalado numa placa da estrada – terra salvadora, andava até
essa localidade e depois procurava encontrar o Caminho. Foi o que fiz. Prossegui caminho
pela estrada nacional na direção de Arcozelo, ladeada por serra florestada mas
sem grande movimento dada a hora. Ainda pensei nos perigos de circular sozinha
mas depois comecei a pensar que devia estar protegida pela condição de
peregrina. Entretanto amanheceu
e entrei no primeiro café de beira de estrada que encontrei.
Era enorme, estava
vazio de clientes e tinha apenas um casal (presumo que os donos). Perguntei se
faltava muito para Arcozelo e ganhei vida quando me disseram que estava em
Arcozelo. Pedi o pequeno-almoço e depois de comer, já restabelecida, meti
conversa com a senhora, dizendo que me tinha enganado no caminho e se ela me
podia dizer onde o poderia apanhar: ‘É já ali à frente, toma a estrada que
curva à direita depois do café a seguir e desce até ao rio. Está sozinha?’. Ao
que eu respondi que sim e ela, estranhando, fez uma conversa religiosa, do
género ‘que Deus a acompanhe’. Ainda comentou a crise e como tinha saudades dos
tempos em que àquela hora tinha o café cheio de operários da construção civil,
defendendo que ‘por aqui, a construção dá de comer a muita gente’. Fiquei a pensar na
conversa e em que modelo de desenvolvimento é este que nos faz depender de
males que consideramos necessários.
Eram 7.30h quando saí
do café, atravessei parte da localidade, fui dizendo bons dias às pessoas com
quem me cruzava, desci muito e em cada cruzamento tive imensas dúvidas. Alegrei-me com o
avistamento da primeira seta amarela e percebi que não as podia largar. O Caminho é muito
duro, mas simultaneamente muito bonito. O Minho tem muita
água, uma natureza abastada e a paisagem marcada pela intervenção humana ainda
é harmoniosa, quer na atividade agrícola (as latadas, os espigueiros, as pilhas
de palha a secar, os lameiros…), quer nas casas, com muitos sinais de
emigração.
A 2 Km de Rubiães
apareceu um oásis – uma roulotte com esplanada no quintal de uma vivenda com um
grande letreiro que dizia ‘Bar Coura’. Um casal com uma menina gorducha tomava
conta do negócio. Pedi um sumo, uma sandes e um café, descansei um pouco e
comecei a acreditar que podia chegar ao fim da etapa. Uns peregrinos
paravam para comer e descansar, outros seguiam caminho e saudavam: bom caminho! É curioso porque a
diversidade de peregrinos é muito grande mas, toda a gente sorri e faz votos de
bom caminho, em português ou espanhol.
Fixei alguns que
fizeram esta etapa desde Ponte de Lima e, como não sei quase nada sobre eles
descrevo-os por algumas características que se salientavam: o francês
fala-barato; o alemão grande e gordo como um urso; o casal inglês de
meia-idade, ele empresário e ela ‘housewife’ (em inglês ainda soa pior), com ar
de caminhantes profissionais; um pai e uma filha adolescente, muito ruiva, que
falavam inglês; um casal de alemães jovens, bonitos, com um ar roqueiro; uma
jovem estrangeira muito alta que parecia uma girafa; duas alemãs que pareciam
mãe e filha; um senhor de bastante idade que parecia um gafanhoto e uma jovem
nórdica… de certa maneira, com a partilha da condição de peregrino é como se
algo nos unisse, dando uma sensação de pessoas conhecidas, familiares, quase
vizinhos.
Na chegada a Rubiães
as setas colocavam-nos na estrada nacional (com várias pensões particulares a
apelar à estadia de peregrinos – estas rotas também são um negócio e sustentam
muitas atividades económicas) e depois tornaram a meter pela floresta ainda por
uma boa distância. De novo tive receio de estar perdida, não do Caminho porque
estava a seguir as setas, mas do albergue onde tinha escolhido ficar.
Finalmente, o
albergue. Não sei porquê, imaginava que seria um edifício conventual e afinal
era uma escola primária recuperada e adaptada com financiamento europeu. O
funcionário da receção, ao contrário da senhora de Ponte de Lima que era
acolhedora e dava todas as informações, era pouco falador e tinha um ar de
frete. Fez uma pergunta que já me começa a irritar ‘Veio sozinha?’ e comentou
‘Hoje, estão cá 5 portugueses’. E eu com isso? Não
vim socializar. Hoje não estou bem-disposta, apeteceu-me avisar.
Apesar de tudo, no
caminho mantive o ânimo, mas agora sinto-me sozinha. Lembro-me de alguns
aspetos da minha vida e pergunto-me porque estou eu a fazer o Caminho?!
Deixei os pertences
no beliche e fui descansar um pouco à sombra. Depois fui para a fila do duche,
tomei banho e mudei de roupa. Fui lavar a roupa suja da viagem e estendê-la. Voltei para a
camarata e tentei dormir um pouco mas uma das tais criaturas portuguesas
começou a falar ao telemóvel, em voz bem alta. Levantei-me e fui dizer-lhe que
não podia perturbar o descanso de tanta gente – pediu desculpas; pareceu-me um
velho meio tonto que veio a reboque de outros amigos mais concentrados.
Eram umas 6h da tarde
e não me apetecia dar nem mais um passo, mas fiz um último esforço de 1 km por
estrada (dois, para ir e voltar) para encontrar abastecimento: uma primeira
paragem num restaurante para um café e um arroz doce ‘de compensação’ e uma 2ª
paragem num café-mercearia para comprar alimentos que garantissem o jantar de
hoje e o pequeno-almoço de amanhã.
Na volta ao albergue,
cozida com calor (será normal neste Setembro tardio temperaturas de trinta e
muitos graus no final do dia?) voltei a apanhar fresco no Páteo, sem saber
muito bem o que fazer. Chateia-me o
predomínio de alemães, são muitos e fazem muito barulho. Vi uma estatística no
albergue de Ponte de Lima que os identificava como a segunda nacionalidade a
fazer este Caminho, muito perto dos portugueses, na casa dos 1700/ano. Estou estoirada.
Isabel Passarinho
(continua...)
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