Cronica 5 – Estranhezas e Saudades
Dia 6 – Porrinõ/Redondela
Dormi bem e acordei
descansada às 5h, como já vai sendo costume. Hoje é sábado e o
tempo está um pouco mais fresco. Antes de sair fui
beber uma ‘bica’ no restaurante da pensão e fiquei à conversa com o dono, que
era de Granada e bem mais interessante e simpático do que a mulher – eu estava
bem-disposta e aquela breve conversa deu-me ânimo. Sai e deixei Porrinõ
de noite e sem saudades.
Ao raiar do dia, num
troço em estrada nacional perdi-me das setas e quando eu já desconfiava que
teria de voltar para trás, um velhote de lambreta passou por mim e ensinou-me
como é que podia fazer para retomar o caminho mais à frente; mas para se
assegurar que eu não me perdia novamente, passou um viaduto e foi levar-me à
estrada certa – foi providencial esta ajuda porque é mesmo muito difícil
qualquer orientação em território desconhecido.
Quando fiquei de novo
no caminho, comecei a encontrar outros peregrinos: a Alice, de Málaga que
caminha sem mochila meteu conversa e diz que hoje vai tomar banho na praia de
Redondela (?), uns jovens de leste que vêm em grupo conversam como pardais numa
língua desconhecida, o jovem italiano e os seus 2 amigos que me saudaram
alegremente, as 3 mulheres de leste (magríssimas, uma loira, outra ruiva e
outra morena), o casal espanhol em que ele é bastante mais novo e tem ar de
segurança de discoteca e muitos outros. Eu, de vez em quando, dou por mim a
falar sozinha com as setas «Ah, estás aí?» … isto promete.
Quem circula a pé
pode prestar atenção a muitos aspetos que habitualmente passariam
despercebidos, quer com as pessoas, quer com os espaços, sejam eles naturais ou
construídos; e nestes últimos destaco por exemplo as casas, os muros e os
portões - Casas de mostrar sucesso na vida. Portões e muros para afastar (ou
para proteger?). Casas-homem e casas-mulher. Casas feitas aos bocadinhos,
sofridas. Por todo o lado sinais de muita emigração. Esta etapa além de
ser mais bonita, passa por zonas mais habitadas, investidas e equipadas, com
bastantes cafés que tanta falta me tinham feito ontem.
Fig 2: Localização de Redondela num mapa da costa galêga |
Uma das paragens a
meio da manhã foi num café pastelaria na loja de uma vivenda – fiquei
impressionada com a beleza dos bolos que podiam estar na montra de uma qualquer
capital europeia; mas ainda fiquei mais impressionada com a cara de zanga da
senhora (presumivelmente a dona e pasteleira) – e pensei que devia ter uma vida
triste. Será que é ela a
artista? Quereria estar noutro sítio? A casa é enorme, meia por acabar,
descuidada; menos a loja que está improvavelmente cuidada e investida. O sol ilumina a serra
em frente com uma luz belíssima, meio enevoada, mas a senhora zangada não deve
ver esta beleza. Quem lhe comprará os bolos? Como será a sua vida? As pessoas são tão
densas…
Hoje também
experimentei o medo, primeiro à saída de Porrinõ quando comecei a ler nos muros
avisos de cuidado com assaltos de toxicodependentes (não me cruzei com ninguém
mas fiquei mais alerta); depois, quando passei por uma aldeia e me cruzei com
um homem que simulava estar a urinar mas mostrava o pénis e a terceira, já
perto de Redondela, quando passei por outro homem que estava sozinho num parque
de merendas e me pareceu suspeito. Não aconteceu nada em nenhum dos casos e nunca
saberei se os receios que estas situações me provocaram tiveram causas reais ou
fantasiosas; mesmo assim, na segunda situação soube-me bem que o casal em que
ele tinha ar de segurança, viesse logo atrás.
Por outro lado, um
dos medos que levava de casa era o de cães ferozes e os cães que tenho visto
ficam calados à passagem dos peregrinos, como se já estivessem habituados. Até agora não tinha
sentido medos, mas senti muitas vezes a vulnerabilidade aumentada com a noção
de que não sabia por onde ir, não sabia se estava no caminho certo e/ou tinha
pouco controlo sobre outros aspetos, mas ao mesmo tempo tenho sentindo um
aumento de confiança – o que parece paradoxal. E esta vulnerabilidade parece
que tem menos peso do que na vida, onde é mais fácil mascará-la. No Caminho tenho
aprendido a reforçar as hipóteses de solução e a contar com a ajuda de outros.
São 11.30h e cheguei
ao albergue de Redondela que só abre às 13h. Hoje vou ficar por
aqui. Apesar da etapa ser bonita teve várias subidas muito acentuadas e achei
que preciso de me poupar para conseguir fazer o resto do caminho: os 14 Km de
hoje chegam-me muito bem.
Fig 3: Albergue de Redondela |
Atravessei a cidade
guiada pelas setas amarelas e fui até ao albergue que fica num edifício
histórico recuperado mesmo no centro histórico. Estou a gostar da
experiência e, pela primeira vez, sinto-me à vontade para me descalçar e
sentar-me no chão, encostada à mochila enquanto espero que o albergue abra e
olho, com um certo embevecimento, para as botas cobertas de pó.
À entrada estão
outros peregrinos que descansam e esperam a abertura. Nesta espera percebo
a existência de chicos-espertos que caminham sem bagagem mas que agora estão à
porta do albergue com umas enormes mochilas – não percebo a ideia…mas, enfim,
cada um faz o seu caminho (é uma das frases que mais oiço por cá e que me
começa a fazer muito sentido).
O albergue abriu, é
bonito e ficou cheio de peregrinos num ápice. Um dos aspetos
curiosos são as formas como cada pessoa apropria a cama beliche, mesmo sabendo
que é só por uma noite. Algumas pessoas trazem lençol e fronha de casa, outras
põem tudo muito direitinho em cima da cama, outras à balda, umas mantém quase
tudo dentro da mochila, outras não… são impressionantes as variações, sobretudo
tendo em conta que os peregrinos trazem poucas coisas consigo. Outras pessoas
(como a jovem do beliche ao lado) trazem troféus do caminho: um ouriço de
castanha, uma pinha, folhas… fazendo-me lembrar a minha costela recolectora.
Também varia o que
cada um faz, muitos ficam a descansar em cima das camas, uns escrevem, outros
telefonam ou ficam nos computadores pessoais, outros tratam logo da higiene e
lavagem da roupa, outros saem…mas nas horas a seguir à chegada, as pessoas,
façam o que fizerem, tendem a recuperar do cansaço em silêncio. Eu fiz a cama, tomei
banho, lavei roupa e dormi uma sesta de duas horas. Custou-me adormecer
porque no beliche do lado, a jovem escoteira e a sua amiga (de um qualquer país
de leste) estavam a tagarelar alto. Mexi-me, fiz cara feia para perceberem o
incómodo que causavam e mudarem de sítio – provavelmente para a sala de
convívio.
Quando acordei fui
explorar o albergue e encontrei uma exposição de pintura que apreciei com
detalhe; depois fui dar uma volta pela cidade para conhecer a tal «praia». Redondela rima com mortadela - era um nome que não me
dizia nada. Mas as baixas expectativas às vezes trazem surpresas: a cidade é
bonita, está bem cuidada, tem uma localização fantástica na confluência de
vários rios e um centro histórico bem preservado e vivido. É atravessada por
canais, tem muitas pontes de circulação pedonal e nota-se que os rios devem ter
caudais respeitosos no Inverno.
A cidade está toda envolta
por montanhas muito verdes. Depois de andar uns
20 minutos cheguei a uma albufeira (só podia ser uma albufeira, pensava eu)
…mas nada batia certo: cheirava a mar, a água tinha limos e algas marítimas, as
gaivotas andavam no lodo perto do pequeno cais de embarque e na praia, havia um
pequeno porto com barcos de pesca (semelhantes aos de Sesimbra ou Peniche),
circulavam uma espécie de cacilheiros que saiam do local onde eu estava, no
meio da albufeira havia uma ilhota com um tamanho razoável e via uma praia com
tudo o que as praias devem ter; até maré. E qualquer coisa nas características
da água e do vento me dizia que aquilo era mar.
Fig 4: Arredores de Redondela |
Em terra havia
vestígios de indústria conserveira e os cafés do embarcadouro eram parecidos
com os da Trafaria. Só me faltou ir provar a água e juro que não fui apenas por
acanhamento. Tudo isto é muito
estranho! Este «mar» no meio
das montanhas é dissonante, coloca-me perante evidências que não batem certo. Mas
por outro lado, porque é que não pode haver um lago disfarçado de mar no meio
das montanhas?!
Bem, eu hoje estou
«fora de pé», decididamente não estou confortável. Antes de mais, pelo
‘embrulho’ (lavei a minha roupa apresentável e estou vestida de forma pouco
airosa) e depois, pelas saudades – de casa, dos meus, da minha zona de
conforto. Também não tive
nenhum daqueles pensamentos que se impõem durante a caminhada. Quem sabe se a
aprendizagem de hoje não é essa? Sobre as saudades, sobre o valor que têm todos
e tudo na minha vida, sobre a importância de quem sabe quem nós somos e nos (re)conhece?
O tempo mudou.
Aproxima-se uma trovoada. Passar do sol è chuva era algo que não estava nos
meus planos. De volta ao albergue
(já depois de me ter abastecido para o jantar de hoje e pequeno-almoço de
amanhã) cruzei-me com uma espanhola – a Sílvia – com quem conversei um pouco.
Ganhei coragem e falei-lhe da minha estranheza no lago. Primeiro, como boa
espanhola não entendia o que eu lhe estava a tentar dizer; depois, quando
entendeu achei-a perplexa e só me respondeu com a maior naturalidade do mundo
«cheira a mar porque é mar».
E eu, de repente,
plim, fez-se luz com o recorte particular da costa galega e consegui ver
Redondela entre Vigo e Pontevedra, com as entradas de mar. Senti-me muito
palerma mas não tinha ideia de que, visto deste lado, pudesse fazer tamanha
confusão! Hoje, o melhor que
faço é ir dormir mais cedo para ver se amanhã estou menos estranha. Antes de adormecer
ainda me lembro do piar desagradável de uns grandes pássaros pretos (Corvos?
Gralhas?) que estão em todos os bosques…
Isabel Passarinho
(continua...)