Cronica 6 – Sobre erros e voltar atrás
Dia 7 – Redondela/Barro
Esta foi a maior
etapa que fiz no Caminho, com cerca de 30 Km. Inicialmente, planeei
ir até Pontevedra, sendo o percurso descrito como acidentado e passando pelo
Alto da Lomba (5Km), Fonte, Arcade, Alto da Canicouva (12 Km), Rio Tomeza (15
Km) e Pontevedra (18Km). Mas um erro de atenção fez com que eu falhasse o
albergue de Pontevedra e estava tão cansada e com tanto calor que não quis
voltar para trás e andar 10 minutos até ao albergue. Paradoxalmente, prossegui:
fui atravessando a cidade à espera de encontrar uma pensão simpática no caminho
e, quando dei conta já estava a sair da cidade.
Decidi continuar na
esperança de que o próximo albergue não ficasse muito longe, mas os 12 Km que
fiz a seguir foram bastante sofridos. Nesta etapa, pensei
várias vezes em parar e dormir ao relento (nas traseiras de uma igreja, debaixo
de uma latada, debaixo da copa de um castanheiro…) mas acabei por não ter
coragem de o fazer e, com longos períodos de descanso, lá fui prosseguindo até
encontrar o albergue do Barro já no final do dia. Dormi lá a melhor noite do
Caminho.
Este engano e,
sobretudo a decisão insensata que tomei de seguida, quase me fizeram desistir. Na verdade, quando
decidi fazer o Caminho deixei sempre em aberto a possibilidade de, por qualquer
boa razão, poder desistir e como não fui em penitência, isso não seria
desastroso. Mas desistir não é
algo que eu goste de fazer; talvez por isso fui persistindo, persistindo até ao
final da etapa – e é assim que muitas vezes conduzo as dificuldades da vida,
nem sempre bem mas com alguma resistência em deixar «coisas» a meio e muita
dificuldade em «voltar atrás».
Quando sai de
Redondela, ainda de noite como de costume, apanhei bastantes troços de estrada
com grande espaçamento entre setas, o que me dava aquele frio na barriga de
pensar que podia estar enganada. Os primeiros peregrinos que encontrei (o casal
com a mulher mais velha e o homem com ar de segurança) voltavam atrás porque
também pensavam que se tinham enganado mas ali eu estava segura (tinha visto
uma seta à pouco) e pude assegurar-lhes que estavam bem. Deram meia volta e
prosseguiram à minha frente, com um passo muito mais rápido do que o meu, pelo
que depressa deixei de os ver.
Esta etapa tem troços
florestados muito bonitos e belas vistas panorâmicas sobre o mar (que aqui
parece um lago ou albufeira). Numa destas vistas, a Alicia de Málaga pediu para
tirar uma fotografia a si e ao seu companheiro de viagem, um homem pequenino
com ar de gnomo simpático. Depois, pediu para eu tirar uma fotografia com eles
os dois para recordação – achei estranho mas consenti e acabei por também eu
pedir para o gnomo me tirar uma foto com a Alicia. Estranho estes
momentos, questionando-me sobre o que pensarão as pessoas (será que também me
atribuem personagens?) e o que as levará a meterem conversa comigo; apesar de
eu dificilmente tomar a iniciativa de conversar com alguém, estes momentos
ajudam a descontrair.
Noutra paragem,
passou o Hans Joaquim e conversámos um pouco antes de ele se pôr a caminho de
novo (não o veria mais); ainda fiquei a comer alperces secos e nozes. De
seguida pararam ao pé de mim 2 portugueses de Águeda, que vinham a pé desde
casa, fizeram 40Km/dia nas duas primeiras etapas e diziam ter os pés cheios de
bolhas. «Mas as bolhas são para pisar, não é?», dizia o mais novo com ar um
pouco abrutalhado, quando ambos seguiram caminho em boa velocidade. Achei-os
bastante lunáticos…mas cada um sabe de si.
De qualquer forma eu
hoje ando a passo de caracol e tenho a sensação que todos os peregrinos passam
por mim. Até os passeantes de domingo – sim, porque neste troço vi muitas
pessoas que deviam ser habitantes locais a fazer a sua caminhada de domingo. Um destes passeantes
(acompanhado de uma senhora) depois de desejar bom caminho, como todos faziam,
perguntou de onde eu era; quando disse que era de Lisboa, o sorriso abriu-se e
disse que tinha estado 4 anos em Portugal e tinha gostado muito. Seguiram, muito mais
ligeiros do que eu, deixando-me com aquela ideia de que os estrangeiros
apreciam mais Portugal do que os próprios portugueses.
Parei a 1km de
Pontevedra num café/tasca regional para a ração do costume: água, dois sumos de
fruta e um café – esta é outra constância do caminho. Falhei o albergue de
Pontevedra. Vi o sinal, mas
fiquei na dúvida se deveria seguir ou virar à direita. Optei por prosseguir,
seguindo os 3 homens «língua-de-trapos» que me ajudaram a ajeitar a vieira na
mochila quando a comprei.
[Apenas em Arcade, localidade
conhecida pela sua ponte medieval, encontrei os habitantes a vender vieiras aos
peregrinos, provavelmente aproveitando o recurso que o mar-lago lhes deposita à
porta. Comprei a minha por 2 € a uma jovem e simpática senhora marroquina que tinha
duas crianças pequenas a espreitar pela porta entreaberta]
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Fig 2: Pontevedra |
Andando pelo meio da
cidade mais 10 minutos sob um sol escaldante encontrei uma peregrina espanhola
com quem já me tinha cruzado e perguntei-lhe pelo albergue; ela confirmou que
teria de voltar para trás. Era uma da tarde,
estava um calor incrível e decido seguir em frente, até porque é domingo e não
me apetece ver monumentos nem passear sozinha. No atravessamento da
cidade percebo que é bonita, que tem um centro histórico muito antigo e bem
preservado mas saí pela Ponte do Burgo tão depressa quanto pude.
Parei de novo à
sombra de um bosque. Descalcei-me e inspecionei os pés: será que aguentam? Qual
a distância que terei que fazer até outro albergue? 12 Km para Barro? Apetece-me desistir.
Em Pontevedra passei no terminal rodoviário e apeteceu-me apanhar o primeiro
autocarro para casa. Hoje andei todo o dia
a perguntar-me porque é que estou a fazer isto? Porquê e para quê? Não posso negar que
tem o seu quê de ‘sacrifico’ mesmo que eu não lhe atribua penitência nenhuma.
Mas para quê?
Passam muitas ideias na
minha cabeça, entre elas a ideia de «esticar a máquina», como os carros velhos
que de vez em quando precisam de andar a mais velocidade. Mas não é só isso.
Também não é aquela coisa dos pecados, das promessas e da salvação, para as
quais não tenho paciência nem convicção. Como é que me meti nestes ‘trabalhos’?
Lembro-me que a
propósito de outras caminhadas (nomeadamente os percursos formativos mais
longos e mais próximos da Terapia Familiar ou do Doutoramento) também me
questionei assim. Às tantas parece que tenho que provar algo – o quê? A quem?
Será que preciso de
me lembrar do que ainda sou capaz?
Será que preciso de
segurança para seguir com o meu projeto? Qual é o meu projeto?
Talvez seja isso,
talvez a decisão de fazer este caminho seja a forma que encontrei para me dar
tempo de descobrir o que quero fazer da vida que me resta?
A verdade é que eu
estou numa fase em que tenho o passado mais ou menos ‘resolvido’, tenho o
presente tão ‘arrumado’ quanto pode estar nestes tempos de incertezas e não
tenho projetos para o futuro. No meio de muita coisa que «era gira», que «podia
ser», simplesmente não é, não sei ao que me proponho, não sei para onde vou,
não sei se ainda quero algo. Talvez fazer o
caminho signifique procurar sentidos e significados para o que ainda quero da
vida.
Já acabei a água no
cantil e as fontes por onde tenho passado não são seguras. Perdi a noção das
distâncias e já não sinto nada, pareço um autómato. Só me vem à cabeça o
disparate de não ter ficado em Pontevedra…
O caminho é quase plano,
à beira rio e bastante sombreado. Tem passado poucos peregrinos a pé, mas
alguns de bicicleta e outros a cavalo. Vou parando amiúde, mas não tenho
coragem de pedir água a quem passa, nem sequer pedir informação sobre a
distância do próximo albergue. Tenho um aperto no
peito.
Penso em como estarão
os meus filhos e algumas pessoas que me são próximas. [São 8 da noite em
Portugal e 9 em Espanha. Já estou no albergue do Barro de banho tomado e roupa
lavada, está fresco e é quase noite. Cá fora estão outras pessoas à conversa,
sentadas em cadeiras de jardim; fui para uma mesa sozinha para escrever]
Estava eu, em
desespero, sem me achar capaz de fazer o resto do caminho quando passa um jovem
e percebo pelo sotaque do «bom caminho» que é português. Saudamo-nos e
começamos a falar, vai de regresso de Santiago e eu pergunto-lhe se falta muito
para uma aldeia ou para um albergue. Diz-me que não, que no fim da subida
existe uma aldeia e que o albergue é um pouco mais à frente.
Ganho ânimo e faço-me
ao caminho. No cimo da subida, ainda antes da aldeia encontro um casal de
velhotes em passeio de fim de tarde, perguntam-me de onde venho? Sozinha? Dizem-me que o
caminho é muito duro e que é bom fazer etapas mais pequenas (agora sei que têm
razão). Dizem-me também que na aldeia posso parar, comer uvas e dormir, se
quiser. Despeço-me deles com
o coração aquecido porque me pareceram pessoas boas.
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Fig 3: Rio Barosa, Barro |
Na entrada da aldeia,
paro num café com ‘hostel’ privado. O café tem uma esplanada coberta por uma
latada linda e eu fico por ali a beber o sumo e o café da praxe. Servem-me ‘Compal’ e
eu, alegre e surpresa, pergunto como é que fizeram esta opção? A senhora diz-me
que o vendedor apareceu e que gostaram muito do sumo, que é melhor do que as
marcas espanholas. Concordo e bebo dois.
Peço indicações sobre o albergue e a senhora diz que é perto, apenas um km.
Realmente, as distâncias são muito relativas, o que é 1Km para quem já andou
29? Retomo caminho e
abasteço o cantil numa fonte que a senhora do café indicou.
Um quilómetro e 400 metros
depois chego ao albergue. Ao chegar, a primeira impressão foi a de que estava a
chegar a uma comunidade terapêutica. Não sei se foi por ser recebida por 2
homens com ar hippie e com cigarros apagados na mão… ou se estou a ser
preconceituosa. Fui recebida na sala,
onde estavam outros 2 homens, um fazia sumos naturais e outro ajeitava os
legumes frescos que estavam para venda, alinhados em caixas numa das paredes; e
tudo era normal, os duches, a camarata (bastante mais pequena), o local de
lavar e secar roupa, a esplanada ajardinada lá fora.
O João e a Barbara,
um casal de peregrinos polacos foram as pessoas com quem conversei, sobretudo
com ele que era um falador (ou dominava melhor o inglês?). Fugiu ao regime
comunista, foi para Itália e de lá para o Canadá onde esteve imigrado uma série
de anos. Estão bem de vida, são católicos e fazem o caminho com motivação
religiosa. Tem achado o caminho
português muito bonito, com terras «gordas», muito férteis e cheio de água «que
brota da terra». Diz que na Polónia já sentem muito a falta de água, que é
frequentemente racionada em meio urbano e que já tem os lençóis subterrâneos
comprometidos. Gostam muito de Portugal. Reparto com eles as
últimas nozes que tenho e vou deitar-me. Está uma noite fria.
Isabel Passarinho
(continua...)