Viver não é um exercício fácil.
Em tempos conturbados e incertos de
violência extrema, conflitos alastrados, terrorismos e governanças globais
invisíveis fica difícil seguir por uma pauta segura. Acrescem os paradoxos, os dilemas e as
guerras internas que têm feito parte do ser humano e do viver nas sociedades.
Sobre estas últimas tenho algumas
convicções, construídas em contacto com aprendizagens várias, com os meus próprios
sofrimentos e alegrias e também em interacção humana e profissional com os
sofrimentos e as alegrias de muitas outras pessoas. E, para muita gente a vida não tem
manual nem se ensina.
Existem períodos da vida, às vezes vidas
inteiras, em que a alma está imersa em noite escura. Sem clareiras, sem esperança, sem
futuro(s), habitada por sombras e espectros, guerras e ódios, errâncias, tristezas,
amarguras, desilusões ou vazios. Mais ou menos disfarçados. As
pessoas e as suas circunstâncias são muito variáveis e podem utilizar uma
enorme paleta de comportamentos e emoções. Mas tendo a achar que no meio de
toda a diversidade é decisivo o SENTIDO que damos ao que estamos a viver.
- Como me defino? Qual a dimensão do meu
problema? Eu sou o meu problema, ou existo para além dele? Como encaro as
minhas circunstâncias? Como me projecto no futuro?... Não me refiro aqueles inevitáveis pequenos
problemas do quotidiano para os quais quase sempre arranjamos solução. Em regra
adaptativa.
Refiro-me aos GRANDES problemas.
Aqueles que no nosso sentir são
devastadores e para os quais o nosso reportório de soluções não serve. Aqueles
que nos põem em causa no mais fundo do nosso ser. Os que exigem que nós mudemos
sem saber como nem para onde. Os que não ficam aliviados com os conselhos dos
outros. Os que não nos deixam rir, dormir, ou comer. Os que nos atingem na
nossa pulsão de sobrevivência. Ou os que não dependem de nós para serem
resolvidos. Destacam-se as circunstâncias ou os
recursos (individuais e colectivos)? Somos capazes de nos resolver? Até que
ponto é que as pessoas se auto determinam ou são determinadas? Este debate pode parecer estéril (uma
história semelhante à do ovo e da galinha tentando saber quem nasceu primeiro)
mas tem feito correr investigações em muitos campos das ciências ditas sociais.
Investigações inconclusivas, como a ciência pode ser.
Sem maiores debates filosóficos, dou de
barato a existência da Alma. Entendendo por Alma uma espécie de
ânimo, de energia vital que nos habita e que talvez possa deixar de nos
habitar. Por uns tempos ou definitivamente – e digo isto sem a menor ideia do
que lhe acontece ou de para onde vai quando nos abandona. No meio desta história veio-me à cabeça (nem
sei porquê) uma frase atribuída a uma senhora do jet-set nacional que diz que ‘estar vivo não é o contrário de estar morto’. Não sendo admiradora do género, nem
particularmente da senhora em causa, acho piada à fonte e não posso estar mais
de acordo.
Acredito que pode haver estados emocionais
intermédios de quase vivo ou de morto-vivo. E, se na verdade nada sei sobre a
morte, não sou especialista de saúde (nem de doenças), nem quero encaminhar
esta crónica para campos esotéricos, arrisco defender que existem estados de
alma que reduzem por assim dizer a nossa ‘vivência’. Estamos vivos, mas pouco.
Sei que, ao longo da minha vida, já
experienciei a noite escura da alma. Já me perdi de mim, já perdi o foco, já
fiquei ‘sem saber’ e ‘sem poder’, já fiquei mortificada por dentro. Eu, a Clara, o Antero, a Paula e tantos
mais. Para uns será apenas uma travessia. Para
outros pode ser um habitat.
A Clara é um furacão. Uma mulher com
enormes capacidades, empresária, tem projectos, família e amigos. Está
habituada a ter controlo de tudo mas perde o controlo de si com alguma frequência.
Precisa muito do reforço e do reconhecimento dos outros. Toma medicação psiquiátrica para controlar
a raiva e aguentar o ritmo e as contrariedades. Talvez a dor maior (admitindo
que a dor tem escala) seja pela frustração, pela culpa, pela impotência de se
entender com ela e com quem ama. A vida aceleradíssima não lhe chega.
Ocupa-a e na verdade salva-a de males maiores mas não a salva do vazio. Passa a
semana a trabalhar em horários impossíveis e aos fins-de-semana faz cozinhados
alquímicos que ninguém aprecia. Clara não descontrai. Qualquer falta de
atenção pode ser fatal.
Antero é um homem errado. Deu tudo
errado na sua vida. Entre um copo e outro, sente que a vida
lhe deve, que foi injusta consigo. Cortou laços com a família, tem
companheiros de circunstância, trabalha às vezes, come quando pode e nem sempre
tem tecto. Quando tem dinheiro faz festa. À sua maneira. Não faz grande análise da vida, nem para
trás nem para a frente. Só tem um dia de cada vez. Tem algumas qualidades e uma porção de
características que lhe têm dificultado a vida. Na verdade também não tem
vocação para malandro. Apesar dos treinos. Pode ser que o seu talento seja
sobreviver, manter-se à tona, vaguear na vida.
Paula é uma mulher bem-nascida. Trabalha
numa ONG, dedica-se a causas sociais e a pessoas pobres com muitos problemas. É
uma gestora social. Muito atarefada e reconhecida. Ninguém diria que dentro dela moram
muitas dores. Umas mais profundas, outras mais recentes e outras mais
incandescentes. Também moram alguns mortos. Gente que ela ama e lhe faz falta.
E vivos. Gente que ela não pode cuidar e amar como gostaria. É amiga sem
amigos. Paula tem uma expressão dura, de um
sofrimento que disfarça mal. Um olhar gelado de solidão. No dia-a-dia gosta de acção, de estar
sempre disponível, de ajudar os outros. Raramente fala de si e não tem
confidentes. Em muitas noites mal dormidas, só com a verdade por companhia pergunta-se
o que fez para merecer tamanha dor? E não consegue ter paz. A dor não se conta.
Termino com a história das Ostras como
metáfora da resiliência[i]. Alguns destes moluscos, em determinadas
circunstâncias fabricam preciosas pérolas em reacção contra invasores externos que
podem ser apenas grãos de areia. Utilizam um mecanismo de defesa que, num
tempo longo (cerca de 3 anos) neutraliza a agressão e, camada após camada,
forma a única gema de origem animal - a pérola.
Isabel Passarinho
[i]
Capacidade de lidar com os problemas, resistir e superar as adversidades.
Sem comentários:
Enviar um comentário