Fora de Tempo. Ainda sobre Festivais
de Verão…
Embora o Outono
se instale, só agora gozo um período de férias. Férias que, cada vez mais,
significam um tempo de distância em relação aos ritmos, aos lugares e às
pessoas que preenchem o quotidiano de rotinas marcadas pelo trabalho.
Há já
vários anos que dou um destino diferente a este tempo. Diferente
porque o orçamento disponível não aconselha viagens de lazer. Mas diferente
também porque o lazer já não tem o mesmo significado de oposição ao trabalho.Tento agora
conciliar vertentes aparentemente inconciliáveis – descanso, resolução de
problemas práticos adiados, outros trabalhos e experiências novas que permitam
aprendizagens.
Nesta
última vertente tenho beneficiado de uma rede de amigos com quem é possível estar/trocar/colaborar.
Gente do Movimento de Transição, da tribo da Permacultura, gente que procura
modos de vida ambiental e humanamente mais amigáveis. Nas cidades
e fora delas surgem pessoas e famílias que se atrevem a construir vidas que não
se centram no emprego e tentam emancipar-se do consumo e dos empréstimos
bancários. Está em
curso um movimento esperançoso de modos de vida alternativos ao mainstream.
Gente com capital cultural e educativo, de todas as idades e
condição, de filosofias diferentes, com posições críticas face ao capitalismo
de casino e comprometidos com a urgência de nos tornarmos mais sustentáveis. Conseguem
viver com muito menos dinheiro, alguns deixaram os trabalhos ou estão
reformados, voltaram à terra e a economias de subsistência, outros mantem
actividades artísticas ou de outro tipo com vínculos liberais. Vivem todos com
orçamentos muito mais reduzidos e estão ligados em redes, integrando-se com as
comunidades locais de acolhimento.
Na minha
itinerância fui a Santo André e Lisboa, sempre, com particular destaque para a
renovada Mouraria. O período maior fui para a Beira, uma zona lindíssima entre
Côja e Avô, entre as Serras do Açor e Estrela. Uma
natureza ainda pujante, um património cultural e arquitectónico muito rico e
muita gente, nacional e estrangeira a tentar reinventar modos de vida.
Em Agosto
participei em dois Festivais que estão também ligados a este Movimento – o Andanças, na Barragem de Póvoas e
Meadas em Castelo de Vide e o Bons Sons,
na Aldeia Cem Soldos, em Tomar. Existe em
Portugal uma razoável oferta, tendo em conta o tamanho do país, de festivais de
Verão - arrisco dizer que existem Festivais para todos gostos, bolsos e
feitios. Os
adolescentes e os jovens adultos são os seus maiores fãs. Mas não são só eles.
Também existem frequentadores menos jovens, de todas as idades. Imagino que
também as motivações que estão por detrás das escolhas sejam diversas.
Sem
enjeitar o valor económico destas iniciativas e uma espécie de efeito Disneylândia com recintos que
funcionam como reservas temáticas, mais ou menos tribais, o certo é que vivi em
ambientes amigáveis, descontraídos, participativos e com ofertas culturais de grande
qualidade. Para mim
funcionaram ao jeito de residências artísticas ou melhor dito, foram uma
espécie de imersão antropológica em territórios não habituais. Ir a estes
Festivais foi garantia de não encontrar pessoas do meu ciclo profissional e até
pessoal – até por isso foi refrescante e permitiu conhecer outras formas de entender
a vida. Descobrir. Compreender. Aprender.
Admito que,
para uma fatia de participantes, o efeito Disney regado a cerveja talvez seja o
móbil. Para os mais jovens, imagino que os festivais sejam uma espécie de
ritual de iniciação ou de passagem em que experimentam sobreviver fora do
controlo parental e do apoio familiar. Ou ensaiam tempos de vida de casal e/ou
de grupo. Claramente, uns conseguem melhor que outros. Estes
Festivais criam reservas de bom trato, de amizade, de alargamento de horizontes
culturais, de possibilidades protegidas de experimentação. São organizados
colaborativamente por associações que defendem e praticam valores que me são
caros - claramente são contextos de educação não formal.
Brevemente:
§
FESTIVAL ANDANÇAS
A
Associação que promove este Festival é a PédeXumbo, de Évora. Sobre o conceito
que está na génese deste Festival, pode ler-se no site:
A Associação PédeXumbo
promove desde 1998 a música e a dança tradicional.
Uma equipa
profissional dedica-se à recuperação e divulgação destas práticas culturais,
através de registos, coproduções, criações artísticas, investigação e através
do ensino formal e informal destinado a todas as idades. A PédeXumbo também
organiza festivais em todo o país e programa regularmente no seu próprio
espaço, em Évora, oficinas, concertos e bailes para vários públicos.
O cartaz dos sete dias (3
a 9 de Agosto) tem uma programação ininterrupta e com propostas múltiplas desde
as 10h até às 3 ou 4 da manhã. Espalhado por um recinto natural fantástico, tem
um forte compromisso de sustentabilidade ecológica.
De facto, viver o
Andanças é isto. O encontro e a partilha. Dançar, ouvir música, atrever-se a
tocar um instrumento, a pintar, a construir qualquer coisa, a participar num
coro mandado. Fruir, da paisagem, do ambiente, dos debates, da música que se toca por todo o lado, de estar em comunidade e em paridade. De celebrar a vida.
De resto, é mais fácil
viver o espírito deste Festival do que contar como foi.
§ FESTIVAL BONS SONS
Esta sexta edição
do festival que se assume ser da música portuguesa decorreu no terceiro
fim-de-semana de Agosto, na Aldeia de Cem Soldos, perto de Tomar. É organizado pela
associação cultural local SCOCS e pretende ser uma plataforma de divulgação da música
portuguesa, quer a consagrada, quer os projectos emergentes.
Mais do que um festival de
música portuguesa, o BONS SONS é uma experiência única. A Aldeia de Cem Soldos
é fechada e o seu perímetro delimita o recinto que acolhe 8 palcos, cada um
dedicado a uma linha programática, perfeitamente integrados nas suas ruas,
praças, largos, igreja e outros equipamentos.
Além desta característica, o
BONS SONS promove uma relação de proximidade com o seu público, envolvendo a
população na realização do Festival. São os habitantes que acolhem e servem os
visitantes, numa partilha especial entre quem recebe e quem visita,
proporcionando a vivência ímpar de um evento musical. A selecção criteriosa do
programa, o recinto único que é Cem Soldos e o envolvimento da população na
realização do Festival são marcas que distinguem o BONS SONS da oferta cultural
nacional. A par da formação de públicos, o BONS SONS tem como principal meta o
desenvolvimento local através da fixação dos mais jovens e da potenciação da
economia local.
Quando chegamos e colocamos a pulseira somos
convidados a fazer parte da aldeia, a partilhar os seus lugares e a conhecer os
seus habitantes e tradições. Durante 4 dias vivem-se os palcos de música, as
exposições, as conversas e as variadas actividades que animam ruas e largos.
Hoje, com cerca de 1.000 habitantes, Cem Soldos
tem um verdadeiro espírito comunitário e mantém as suas tradições vivas e
actuais, registando grande envolvimento nas actividades locais, como é o caso
da animada Festa da Juventude em Agosto, a peculiar Festa da Aleluia na Páscoa
e a poderosa fogueira de Natal. Em 1192, no reinado de D. Sancho I, já existia
registo do lugar de Cem Soldos. Conta-se, numa versão da história, que o nome
de Cem Soldos deriva de ter havido nesta povoação um destacamento militar de
cerca de cem homens, aos quais, periodicamente, eram enviados “100 soldos” para
o pagamento dos seus serviços.
O Sport Club Operário de Cem
Soldos (SCOCS) é a associação cultural local que, desde 1981, tem por missão
promover o bem-estar social, cultural, desportivo e recreativo da população,
privilegiando o desenvolvimento mútuo da Associação e da Comunidade nestas
vertentes. O SCOCS tem assegurado a criação de uma dinâmica social excepcional,
sendo responsável pelo envolvimento comunitário, formação e empreendedorismo de
muitos jovens de Cem Soldos, cujo resultado mais mediático é o festival que se
tornou nacional: o BONS SONS.
O ambiente é
miscenizado entre os habitantes autóctones mais antigos e mais recentes (já é
muito difícil encontrar verdadeiros rurais nas nossas aldeias), as tribos
artísticas, muitos jovens adultos maioritariamente com pronuncias do centro e
do norte, os estrangeiros jovens e menos jovens que vêm pela música, pelos
artistas de renome e/ou pelo projecto da Aldeia. O objectivo
final deste festival é o de retribuir à aldeia o esforço e o envolvimento, com
aplicação das verbas em iniciativas sociais e culturais que beneficiam a sua
comunidade.
Isabel Passarinho
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