Há tempo que esta
pergunta me anda na cabeça.
Não é minha, mas
integrei-a de tal forma, que quase me parece minha. Como uma filha adoptiva que
à força de ser amada, já não faz diferença que tenha nascido em outra família.
Na verdade foi uma
educadora amiga no meio de um relato muito vivo do seu dia escolar que me
contou, perplexa, que o menino João (vamos chamar-lhe assim) no contexto de uma
actividade pedagógica lhe tinha feito esta pergunta.
Passou muito tempo. O
menino da pergunta já deve ser quase-homem. Sim, porque ser homem acontece cada
vez mais tarde. Mas a pergunta, essa nunca esqueci.
Talvez o poder desta
pergunta seja a não resposta… fico ali a remoer, só a pensar, perdida em
viagens no tempo. E se me fizer a pergunta não sei responder.
Qualquer tentativa de
resposta será menor e uma pergunta destas não merece.
A sua importância
reside no espaço que abre …
Não faço grandes
balanços no final de ano, mas sou fascinada pelo poder das perguntas
verdadeiras. Aquelas para as quais não temos respostas e que desaprendemos de
fazer com o avançar na vida e a submersão em rotinas, certezas e pragmatismos
utilitários.
Quantas vezes fazemos
perguntas mais ou menos retóricas? Afirmações com ponto de interrogação a pedir
só para serem confirmadas.
- É assim, não é? Não me estás a dizer isso, pois não? Onde é que isto vai chegar?...
Lembro-me de um
professor do curso de Terapia Familiar que falava das ‘perguntas dormitivas’
para nomear as perguntas que lhe davam sono e que não colocavam nenhuma questão
- quantas vezes nos esquecemos de perguntar, em situações desconhecidas ou que desafiam
o nosso conhecimento?
- Não sabia que podia perguntar, diz Júlia,
a medo.
O medo que nos
paralisa, as rotinas que nos embrutecem, a dessensibilização que fazemos para
não sofrer (- Não me doeu, dizem algumas
crianças em desafio), a normalidade que nos enforma e nos faz esquecer quem na
verdade somos, calando aquela criança que fazia perguntas.
‘- Não sabes? Eu também não. Vamos descobrir juntos?’ – dizia João
dos Santos, o pioneiro da psiquiatria infantil à criança que atendia no seu
consultório. E pela grandeza do seu legado e das suas histórias acredito que o
Mestre estaria a ser verdadeiro quanto a ‘não saber’ sobre o sofrimento da
criança e as hipóteses de o diminuir.
Em tempos em que o
mundo supostamente civilizado está entregue a atores medíocres e perigosos,
acometidos de uma loucura que se permite reverter conquistas civilizacionais
que (estupidamente) alguns de nós demos por garantidas e ‘as águas’ se agitam
entre mil guerras um pouco por todo o lado… para onde vão os dias que passam? Em
tempos de banalização do mal (como diria Hannah Arendt)
em que as pessoas se alheiam umas das outras e de si próprias, fechadas nas tecnologias
que supostamente as globalizam, e estranhas aos outros próximos … para onde vão
os dias que passam? Em tempos de
hipervalorização de eficácias, de resultados, de ‘acelerações’, de
competitividade mesmo que mascarada de cooperativa…para onde vão os dias que
passam? Em tempos de
rarefacção e alienação do trabalho, em que as pessoas já não são o que fazem
mas também não são mais nada a não ser consumidores controlados digitalmente
pela promessa de satisfação rápida que o dinheiro pode ou não pode comprar…
para onde vão os dias que passam?
A História ensina
muito sobre o que foi. Mas é pouco útil para usarmos hoje. Nos desafios que nos
atormentam aqui e agora. Talvez para isso existam as histórias. As histórias de
gente banal. Existe tanta gente, todos os dias, a fazer tanta coisa boa. Gente
anónima. Cheia de defeitos e qualidades.
Era assistente social e responsável técnica
por um Lar de idosos. Uma instituição de cariz associativo que foi crescendo ao
longo de 4 décadas. Tinha hoje um universo de respostas sociais bastante
diversificado e que apoiava muita gente. Era também um grande empregador local.
E um polo de cuidado aos velhos e às famílias e de relações positivas,
fortalecedor do tecido social. O seu quotidiano era de loucos! Dias compridos,
corridos entre gestão de pessoal, dinamização de atividades, gestão de relações
e conflitos, controlo de muitas variáveis, redes de parceria, actividades
agendadas e outras que entravam pela agenda dentro, sem aviso.
Atrasou a reunião onde íamos falar sobre uma
experiência laboral de um jovem com deficiência pela urgência da sobreposição
de outros assuntos – tinham vagado 2 quartos e existiam dois casais de
namorados no Lar (sim, as pessoas de idade avançada ainda têm sentimentos e
podem apaixonar-se) que pretendiam mudar para quartos de casal. Por um lado a
pressão de rentabilidade dos quartos que não podem estar vagos, por outro a
necessidade de assegurar que todos os intervenientes estão de acordo com a nova
opção. E nos dois casos, existiam filhos que não estavam de acordo.
Apesar de os idosos estarem na posse das
suas faculdades, os filhos comparticipam na mensalidade do Lar e precisam de
ser consultados e dar consentimento. É necessário informar, gerir sentimentos,
negociar, procurar soluções, gerir revoltas e acautelar que as pessoas
residentes se continuam a sentir, o melhor possível, na nova casa colectiva.
Este é um exemplo pequeno de que existem
trabalhos sui generis. Onde a fronteira é ténue entre ser trabalhador por conta
de outrem, com um contrato que prevê x tempo por y dinheiro em determinadas
condições, e ser ‘uma pessoa que se sente responsável pelo bem-estar de outras’.
A dedicação, o consumo de energia, o gasto de tempo são tão intensos e
prolongados que muitos destes técnicos vivem as suas vidas no trabalho. Dão o
melhor de si nestes dias cheios de situações, mais ou menos emergentes, que
precisam de ser resolvidas, com grande disponibilidade emocional, mas também com
trabalho de registo, de avaliação e planeamento que muitas vezes é levado para
ser terminado em casa, porque o horário tipo de trabalho é cheio de coisas que
não podem esperar.
A chegada a casa (diferente quando existe
família e quando não existe, diferente quando a vida está calma ou revolta) é
muitas vezes só o espaço e o tempo de carregar baterias para conseguir estar capaz
no dia seguinte. Algumas pessoas conseguem trabalhar assim toda a sua vida activa...
- No meu tempo… dizem algumas pessoas,
referindo-se ao tempo da sua infância ou juventude. Como se tivessem sido
puxadas para trás. Como se o tempo actual não fosse delas. Como se hoje só
houvesse tempo para os jovens com menos de 35 anos. Ou 40? Ou 45?
Não interessa onde
está o marco.
Não quero correr o
risco de dourar tempos passados por lapsos de memória ou efeito de distância.
Ou simplesmente por vazio e desesperança do hoje e do amanhã. Não quero viver a
recordar outros tempos.
Quero acreditar que
nas atuais tensões, nos movimentos sociais anti
mainstreming que surgem e se conectam também um pouco por todo o lado
existem opções, possibilidades, sementes de mudança. Individual e colectiva.
Mas é preciso gastar muita energia para continuar a acreditar, para
não nos deixarmos ir na enxurrada, para resistir, procurar sentidos novos, para
lutar contra as nossas incoerências. Para procurar. Para procurar sempre.
Para onde vão os dias
que passam?
Isabel Passarinho
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