Desengane-se quem acha que se
escreve com facilidade. No que me diz respeito, a escrita é sofrida.
Não necessariamente por ser
autobiográfica.
‘O poeta é um
fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que
deveras sente’, diz Pessoa.
Sem veleidades,
escrevo o que na altura me faz sentido. E fazer sentido implica alguma censura
e renúncia também, numa cadeia de opções que é dolorosa. Existem temas e
palavras que se impõem. Muita confusão. Depois até ao produto final é uma
longa, sinuosa e poeirenta caminhada.
Começo várias vezes,
deixo para trás muita coisa, corto, reescrevo, misturo assuntos meus com outros
emprestados, baralho tudo e vou encontrando caminho pelo meio das palavras sem
saber onde me levam. Como a água a escorregar por entre as tábuas do chão.
Às vezes para lado
nenhum.
‘Queria escrever
sobre o mundo, sem psicologia, sem vida interior, sem conflito, sem mim. Foi
por isso que quis escrever sobre coisas, sobre os objectos que existem à minha
volta’, diz o norueguês Karl Ove
Knausgard[1]
da sua nova obra. Acrescentando ‘Fujo a
um contexto moral, a um contexto de significados (…). É a forma como o mundo
existe que me interessa, embora nós estejamos sempre a hierarquizar as coisas,
a atribuir-lhe valores distintos’.
Fico dividida. Sim,
mas também. Ou seja, nesta Crónica Social interessa-me sobretudo a relação –
comigo, com os outros, com o mundo. Com o mundo como o vemos, como nos vemos, à
luz do nosso olhar. Em relações, que estão sempre a ser construídas e
reconstruidas na interacção com os outros. Dolorosamente.
Seria tão mais
simples se as coisas fora de nós fossem só coisas. Objectos físicos.
Objectiváveis.
A mim, que aprecio a
simplicidade, pouca coisa me parece simples.
Rosa pensava que gostaria de ser uma pessoa mais simples. Se pudesse
escolher não complicava tanto. Não podendo (existem vidas que são sinas)
complicava mesmo.
Não sabia explicar. Quando dava conta estava tudo enredado e ela atada,
doída, sem saber das pontas. Só queria resolver. Mas acabava por virar tudo
contra ela. E a Rosa precisava tanto de ser gostada.
Pensava que se fosse uma pessoa mais fluida, com maior capacidade de
aceitar, até os medos, talvez a aceitassem melhor. Sentia-se certa, segura dos
seus valores, injustiçada.
A rigidez de Rosa não a deixava descontrair. Julgava os outros e as
situações, convencida que não o fazia. E isso trazia-lhe pequenas e grandes
perdas.
Refém das suas certezas picava, em luta com
a falta de suavidade’.
Conheço algumas
Rosas. Às vezes parte de mim é Rosa.
Tenho momentos de
fraqueza, maus momentos, em que deito tudo a perder. Outros de fragilidade.
Outros de zanga, de irritação. Outros em que fico mal na fotografia.
A luta contra os
moralismos, os nossos ‘bons’ moralismos, é incessante.
O que sei sobre a
natureza e o funcionamento humano nem sempre previne reacções de Rosa.
O lado bom desta
aventura é o que faz de nós gente. Pessoas incertas, com muitos lados e alguns
menos bonitos. Com dias, com luas, com humores, com amor e falta dele. Sem
coerência. A nossa frágil humanidade terá tanto de imperfeita como de
resiliente.
Dizem que somos um
país de fado.
Sem desprimor para
esta expressão artística, saliento a conotação de um lado português fatalista, com
tragédias mais ou menos levezinhas. Destino, sina, lamentos e queixas.
Dizem que somos um
país que se queixa de mansinho, para o lado, em conversas de corredor que não
chegam a lado nenhum. Tecemos enredo. Contornamos. Desenrascamos. Inventamos
formas de subverter a regra ou de dar a volta. Somos provincianos. Pequenos e
mesquinhos.
Somos também heróicos,
capazes de grande humanidade e gentileza. Somos suaves, generosos e educados.
Amamos os consensos e evitamos conflitos. Somos trabalhadores, dedicados e
criativos. Somos o melhor, o pior e o assim-assim. Somos gente.
Deixar andar é levar a vida em gestão corrente pautada por
ingredientes vários, sem ontem nem amanhã. Um dia de cada vez. Logo se vê.
Deixar ir é seguir o
nosso caminho, deixando que outros sigam os deles. É aprender a confiar. É
aceitar as nossas imperfeições e percorrer um percurso no sentido do desapego.
É não reter sentimentos negativos que nos aprisionam. É ser amigável. Também
connosco.
Valorizo o Deixar ir.
Embora seja uma tarefa gigante.
Live and let live até certo ponto. Até ao
ponto onde me cruzo com as minhas próprias arrogâncias, tensões e desejos de
controlo.
Vi recentemente o filme Sete
minutos depois da meia-noite[2] que
fala de sentimentos de perda, medo e solidão e também da coragem e da compaixão
necessários para os ultrapassar.
Conor, o menino protagonista, vive com a mãe doente com um cancro terminal
e vai ser desafiado por um ser sobrenatural, uma árvore- monstro que lhe
aparece naquela hora precisa. O monstro da culpa é uma metáfora poderosa que
percorre toda a história até à aceitação da morte para poder fazer o luto.
Um exemplo extremo e
doloroso sobre Deixar ir. Com histórias de moral surpreendente. Existem dores
tão avassaladoras que têm potencial transformador.
Já fiz alguns lutos
próximos e sei que é impossível ficar igual. Depois senti necessidade de
activar a vigilância sobre os meus traços mais vincados – o que nos salva é o
que nos mata.
Como nos harmonizamos?
Irrita-nos o outro ou o que o
outro faz mexer em nós? Não me refiro aos ‘diferentes’ que estão no outro lado
do mundo, mas aos ‘diferentes’ que estão ao nosso lado. Diferenças de ‘olhar’,
de valores, de prioridades, de formas de ser e de estar.
By the way…Como é que ficamos Rosas?
Escrever dói.
Isabel Passarinho
[1] Este reconhecido autor contemporâneo ‘pinta com as palavras’. Ficou célebre
com a obra ‘A minha luta’ com uma
narrativa obsessivamente autobiográfica- utilização de excertos da entrevista
na Revista ‘E’ do Jornal Expresso de 12 de Novembro de 2016, em artigo de
Cristina Margato .
[2]Do realizador
catalão J.A.Bayona. Inspirado numa ideia original da escritora Siobhan Dowd que
morreu de cancro em 2007.
Gostei do texto, bem escrito e profundo. Sem dúvida que escrever, aliás, exprimir sentimentos ou pensamentos por palavras não é fácil :) Deixar ir sinal de maturidade, de confiança e de plenitude connosco e com o que nos rodeia.
ResponderEliminarContinua!
Obrigada por mais um texto magnifico..
ResponderEliminarde , uma Rosa. mais conhecida por Fatima aveiro