Neste mês de Outubro fiz
o Caminho de Santiago pela Costa, a partir de Caminha.
Um percurso de
aproximadamente 176 Km, feito em oito etapas de cerca de 20 Km, durante 10 dias
– considerando um dia para ir e outro para voltar para casa.
Foi uma espécie de
segundo parto. Já sem as angústias e as inseguranças da primeira vez - que
aconteceu em 2013, num Caminho de
Ponte de Lima a Santiago. Mas com magia igual.
Maior tranquilidade.
Já sabia ao que ia e já sabia que me era possível – o que não é de menos.
Foram o mesmo número
de dias, sensivelmente os mesmos quilómetros, a mesma organização fluída e
pouco pré-determinada, a mesma mochila emprestada, o mesmo orçamento financeiro
em regime low cost e a mesma vontade
de limpar a cabeça de lixos e
problemas. Tudo o resto foi diferente.
Fui com uma amiga que
ia fazer o Caminho pela primeira vez. Escolhi o Caminho da Costa e acabei por
ficar em outros albergues – a partir de Redondela segui pelo mesmo caminho que
já tinha percorrido e repeti apenas o albergue de Padron.
Reconheci muitos
troços do caminho que já tinha feito mas, de facto, tudo era diferente. Até eu,
três anos depois, estava diferente. Cada Caminho
é único.
De resto eis as
razões pelas quais recomendo o Caminho:
- Pode ser feito à sua medida
Se a ideia de descanso activo lhe faz sentido e
tem mais motivação espiritual do que religiosa, então esta aventura pode ser
sua sem necessidade de cumprimento de promessa ou expiação.
O planeamento, detalhado ou fluido, está
dependente de muitos factores que só lhe dizem respeito a si: a condição física
(qualquer pessoa pode fazer o caminho desde que se conheça e o adapte às suas
possibilidades), a idade, o seu gosto por ir sozinho ou acompanhado, os seus
medos, a sua vontade de se inspirar, ou não, na abundante partilha de outros
peregrinos que está disponível na internet, o orçamento que quer afectar, a
altura do ano em que pretende ir e, muito importante, a consciência das razões
porque quer fazer o Caminho.
Na certeza, confirmada pela experiência destas
duas peregrinações, de que só existem os nossos limites para o fazer. E que
cuidar de nós é fundamental.
Vamos ser
sinceras. Eu gosto de viajar. Gosto de ir, de partir.
O dia de
viagem para a partida aconteceu a 02 de Outubro, num percurso de comboio de
Santa Apolónia a Caminha e terminou com a travessia do rio Minho de barco e a
passeata de 5 km até à primeira cidadezinha galega - A Guardia.
A viagem de
comboio permite passar por sítios diferentes dos não-lugares das auto-estradas.
Mais humanos e próximos da vida, com mais natureza, onde se percebe a estação
do ano em que estamos.
À medida que
o comboio avança, ganho distância e a minha disponibilidade aumenta. Vêm-me à
cabeça rotinas, ocupações e preocupações, mas deixo ir, agora não quero saber.
Agora não me importa.
Chegadas ao
Albergue de Caminha um simpático senhor informa-nos que a travessia do rio não
se faz à segunda-feira. Decidimos atravessar para Espanha e não dormir em
Caminha.
Esta
possibilidade de ajuste, para mim é condição necessária. Embora saiba que
muitas pessoas privilegiam a previsibilidade de marcações prévias e de uma planificação menos flexível. Faça-o à sua medida.
Perguntamos
pelo albergue na vila piscatória e um local dispõe-se e ir connosco até lá,
contando a história da terra, das dificuldades atuais para ganhar a vida e da
migração e imigração das gentes novas para outras paragens.
Chegadas ao
albergue aguardámos. Estava fechado com um letreiro na porta para contactar a
polícia local. Um peregrino ciclista já o tinha feito e, passado pouco tempo,
vieram os polícias que nos registaram a entrada. Instalámo-nos na camarata e
depois de descansarmos um pouco fomos dar uma volta pela terra e jantar um
polvo cozido a saber a mar numa esplanada virada para o porto e para o
passadiço que o contornava – ponto de encontro das gentes locais. Terminámos o
dia com um belo pôr-do-sol.
- Garantia de tranquilidade e
contacto com a natureza
A maior parte dos percursos que fiz, tanto neste Caminho, como no anterior,
são de emersão na natureza. Apesar de atravessarmos cidades (Baiona, Vigo e
Pontevedra) e de termos alguns troços de circulação pela estrada N 550, a
maioria do percurso é feita por caminhos muito bonitos em meio natural,
atravessando bosques, troços de via romana, passando por pequenas aldeias e
vilas em estradas secundárias sem movimento ou em trilhos de terra batida.
Neste
Caminho, o tempo com manhãs frescas e suaves, permitiu começar as etapas mais
tarde e a um ritmo tranquilo. Aliás, caminhar ao nosso ritmo é uma das
sugestões que vale a pena seguir.
Apreciar verdadeiramente os
ambientes por onde passamos, sentir os cheiros, as texturas, os sons, as cores,
o nascer e o pôr do sol, as casas e as gentes é um dos privilégios deste jogo
de sentidos.
Quando andamos a pé vemos as coisas
de outra forma, prestamos atenção a pormenores que não nos são habituais. Para
mim essa é uma das formas de entrar no meu ritmo, de me conectar com a natureza
e comigo própria.
Ao longo do caminho cruzámo-nos com outros
peregrinos, bastantes mais a partir de Redondela quando apanhamos o Caminho
Português - existe uma disponibilidade, um espírito de solidariedade e simpatia
que une os peregrinos e permite ter curtas, honestas e profundas conversas com
quem não conhecemos de lado nenhum, nem provavelmente voltaremos a encontrar.
Também é uma forma de treino da nossa humanidade e a nossa condição humana sai
reforçada.
A primeira etapa decorreu de A
Guardia a Mougás, num percurso de cerca de 20Km por trilhos planos e perto do
mar. Casas dispersas pela falésia, casas-abrigo improvisadas e terrenos vedados
sem casas dão nota de uma procura por gente com menos dinheiro do que vontade
de estar próxima destas belas paisagens. Paragem para almoço numa esplanada fronteira
ao imponente Mosteiro de Oia.
Uma interessante conversa com a
minha amiga sobre ocupação do tempo e sobre o tempo que o trabalho por conta de
outrem ocupa na vida. Dizia-me ela, reformada à 3 anos, que já não conseguiria
ter essa distribuição de tempo na vida dela, muito embora faça imensa coisa.
Este é um assunto ‘quente’ para mim e reforçou-me a urgência de pensar em
outras formas de gestão da vida (e do tempo e do rendimento) que não passem por
ter o grosso do dia e da energia ocupados por um trabalho assalariado.
Chegàdas ao albergue de Mougás,
descansei um pouco. Depois fui até ao mar molhar os pés e acabámos a noite a
jantar uns mexilhões gigantes, à conversa com outros peregrinos e a ouvir um
Americano que tocava guitarra e cantava baladas.
- Uma forma de fazer Exercício
Adoro andar a pé mas sou relativamente
sedentária, não gosto de ginásios e não tenho uma prática física regular. De
resto, tenho uns quilos a mais e já passei os 50 anos.
Se se identifica com alguma destas
características, pode ser para si o exercício físico que o caminho permite. Não
é que os percursos sejam de dificuldade extrema, pelo menos os que fiz, mas a
extensão das etapas e o relevo, acrescentam alguns desafios físicos.
Encaro assim como uma espécie de check-up integral de corpo e mente.
Vamos lá ver como é que o meu ‘equipamento’ está? Será que ainda dá conta do
recado?
Na verdade, muitas vezes e durante anos a fio,
vivi sem me preocupar muito com o corpo.
A não ser que ficasse doente ou tivesse
sintomas incómodos, dei por garantida a funcionalidade deste equipamento fantástico
que é o nosso corpo. Entretanto fui tomando consciência do pouco e do mal que o
utilizava.
O Caminõ pode dar esse contributo de alerta vivido do teste e do cuidado
consigo.
A
segunda etapa foi de Mougás até Ramalhosa. A etapa teria sido menos extensa e
cansativa se não tivéssemos largado as setas durante a maior parte do percurso
(fomos pela ciclovia ao lado da N550, junto ao mar, num percurso plano e que
contorna todas as curvas da costa enquanto o caminho das setas subia a
montanha) e se não tivéssemos passado o Albergue de Ramalhosa convencidas que não
era aquele.
Estes erros representaram um acréscimo
de mais uns 5 km. Felizmente voltámos para trás e embora muito cansadas,
tivemos um fim de dia tranquilo num solar - convento. ‘Tudo é mui cercano’
dizia-nos o senhor que nos desfez o engano e que, à laia dos alentejanos,
desvalorizou o nosso cansaço.
Esta etapa teve marcos na
mudança da paisagem. A passagem pelo Cabo que faz a transição entre as Rias Baixas e as Rias
Altas e o avistamento da enorme baía onde se situa
Baiona, encaixada pelo verde das montanhas e por uma linha de ilhas, de
diferentes tamanhos no mar.
À minha amiga (que viveu em
Macau e conhece a Ásia) fez lembrar as paisagens do sul da China. Certo é que é
uma panorâmica belíssima. Baiona é uma cidade muito agradável e Ramalhosa
também. Cidades cuidadas, limpas, voltadas para a natureza esfuziante daquela
localização e a denotar a atratividade de classes sociais com muito maior
capacidade económica.
A conversa (de manhã enquanto
não estamos muito cansadas) andou pelas dificuldades da comunicação e por
partilhas de recursos tentados e a tentar, para melhorar as nossas formas de
expressão e relação.
- - Necessidade de alguma Auto-Confiança
Decidir fazer o Caminho tem alguma coisa de
corajoso. Percebo que é necessário contornar medos e ter um mínimo de
autoconfiança. Em nós e nos outros. Na vida.
Percebo que estou por minha conta (mesmo que vá
acompanhada), que tenho que me conhecer e confiar nos meus recursos e que é
necessário cumprir metas. Mesmo com algumas hipóteses de improviso - para
aqueles, que como eu, se permitem improvisar.
A concentração das forças físicas e mentais no
andar representa uma espécie de ritual de cobra, de renovação da pele.
Passa pela cabeça desistir, passa pela cabeça
apanhar um transporte entre etapas ou de ali para fora mas no final de cada
etapa, existe um sentimento de superação. E percebesse claramente que esta
história do Caminho é um post-it de
lembrança para a vida, passo a passo, etapa a etapa, com previsibilidade e
imprevisibilidade, com coisas boas e difíceis, com confortos e desconfortos.
Que o caminho nos confronta, nos desafia, nos coloca muitas questões mas que,
como na vida, em última análise, o que importa é como agimos.
Na terceira etapa
deixámos a costa e embrenhámo-nos na serra, rumo ao albergue do Freixo, a cerca
de 08 km da cidade de Vigo. Nesta etapa cruzámos rotas, deixando a rota do
Caminho Português da Costa e atalhando para irmos encontrar o Caminho Jacobeu. Tomei
maior consciência da profusão de Caminhos possíveis e também dos riscos de nos
perdermos das setas.
O que são
marcos? O tempo e a distância podem ser contados de muitas maneiras. Quanto
falta? Perguntamos. E as duas ou 3 horas que obtemos por resposta, é sempre um
marco que nos parece subjetivo.
A etapa, difícil
e bonita, atravessou bosques fechados e frondosos, riachos e aldeias. E, de
facto, esta viragem para as serras muito florestadas convida a um recolhimento,
a um ‘ir para dentro’ diferente de quando estamos à beira-mar.
Na Associação
de Vizinhos que geria o albergue onde ficámos passava-se de tudo um pouco. Ao
final da tarde, enquanto esperávamos pelo jantar,chegavam senhoras, jovens e
menos jovens, com ar urbano para uma aula de aeróbica, havia crianças a brincar,
homens e mulheres que bebiam cerveja e conversavam, aguardando as aulas de
folclore das crianças, alguns velhotes com ar rural que conversavam e o casal
responsável pela gestão, ele enorme e bem nutrido que adorava cozinhar e nos
fez um belíssimo jantar, ela rechonchuda e vestida à minie de aldeia que servia
ao balcão do café improvisado.
Um dos homens
que estava à conversa na esplanada meteu conversa connosco. Que éramos irmãos
mas que tínhamos traído os galegos com alianças com os ingleses. Que eles,
galegos, eram depreciativamente tratados por Portugueses em Madrid.Que tinham
amigos chegados portugueses.
Apesar dos nos
termos deitado cedo, fomos interrompidas pela chegada de uma Russa jovem que
estava exaurida e assustada após ter feita uma mega etapa de mais de 50 km e de
ter sido surpreendida pela noite na travessia das serras. Foi salva pelo
telemóvel com internet e pela solidariedade de uma local que lhe deu boleia até
ao albergue.Conversámos um pouco e tentámos tranquilizá-la.
A pequena camarata
ficava contigua à sala de trabalho da direção da Associação e, pelas 23h ainda
me levantei para lhes perguntar se ficariam a trabalhar toda a noite?
Responderam que não e saíram passado pouco tempo.
A quarta etapa,
de Freixo a Redondela foi a mais dura deste Caminho. Consigo distinguir 3
troços diferentes, o 1º ainda em serra a contornar Vigo e já dentro da cidade
por uma belíssima mata ao longo de um rio, o 2º em meio urbano, que para mim é
sempre mais duro, e o 3º pelo ‘caminho da água’ que decorre a meia encosta, sem
grandes desníveis, parte por estrada secundária bem assinalada e parte por
terra batida. Sobretudo neste último troço, muito longo, o caminho acaba por
ser um pouco monótono e já só me apetecia amandar para o chão e fazer uma birra.
Sobretudo
quando estamos em serra, desistir não é uma opção. É preciso descansar mas
prosseguir até ao final da etapa e isso representa um puxar de limites, que
também tem a sua importância.
Chegadas a
Redondela, o albergue oficial estava lotado mas foi fácil encontrar
alternativa. Acabámos por ficar no centro num pequeno hostal, com ar esotérico chamado ‘Consciência 33’ e gerido por uma Rosa Abreu. Nome português? Sim, pelo
lado da mãe. Também o dono do Café Central onde a minha amiga foi levantar a mochila
(optou pelo serviço de transporte de bagagem) era português. E terminámos a
cantar os parabéns em português a um jovem de 29 anos que fazia anos, a convite
da Rosa. Uma fatia de bolo, um copo de sidra e uma conversa com outro peregrino, mais velho que nós, inglês residente em Hong Kong, com quem a minha
amiga esteve a recordar os tempos e os conhecimentos daquelas paragens.
O Camiño tem
disto, põe-nos em contacto com esta roda gigante que é o mundo. E afinal somos
todos tão semelhantes e diferentes. Tão gente.
- Desafio Low-cost
Dormir e comer bem são as necessidades básicas
das quais não abdico.
Apesar das necessidades de conforto serem muito
variáveis, chego à conclusão que sou pouco exigente – basta-me uma cama
razoável num quarto sossegado, uma casa de banho asseada, uma copa para tomar o
pequeno-almoço e um tanque com estendal para passar por água e estender roupa -
tudo isso os albergues oferecem.
Com a caderneta de peregrino, o custo de noite
nos albergues oficiais é de €6,00. Quando estão esgotados, existe muita outra
oferta, sendo que no máximo paguei €15,00 por quarto duplo ou pequena camarata
de 4 pessoas, onde por vezes ficámos só nós as duas.
Mas se tem maiores exigências de hospedagem
também não terá problemas.
A comida também é assunto fácil de resolver.
Comemos em restaurante uma ou duas refeições por dia a preços justos. Procurámos
comer produção local e de estação, cozinhados simples, acompanhados por umas taças
de vinho branco da região ou sidra.
Não saímos dos albergues sem tomar um bom pequeno-almoço
e um café (em algumas etapas a minha necessidade de café matinal fez-nos andar
mais um quilómetro), levávamos sempre alguma coisa leve para comer durante as
etapas (fruta fresca e seca, ovos cozidos, alguma coisa que sobrou do jantar
anterior e foi transformada em sandes…), bebi muita água e ao jantar, comemos
sempre bem e a preços simpáticos.
Na quinta etapa percorremos um percurso entre Redondela e
Ponte Vedra que me pareceu fácil, com um grande troço feito por estrada romana
em lindíssimos bosques de carvalho.
Nesta etapa eu já reconheci o caminho. Identifiquei alguns sítios, em especial os locais onde tinha feito paragens e lembrei-me de um maior cansaço e solidão.
Tinha dormido muito bem na noite anterior e a manhã estava
fresca e ideal para caminhar.
Tomei nota de receitas de doces não convencionais que a
minha amiga partilhou. É curioso ela dizer que nesta fase da vida privilegia o
fazer, apesar de ter sido docente e ter uma vida intelectualmente muito ativa.
Percebo isso porque nesta altura do caminho a minha cabeça
está quase desligada e o corpo ativado.
O albergue em Ponte Vedra é gigante e inclusivo. Tem um
grupo de pessoas com deficiência que fazem o caminho em grupo com outras pessoas sem deficiência, todos em bicicleta, sendo umas adaptadas, em modelos
extraordinários que eu nunca tinha visto. Tem também famílias, com crianças
pequenas, que também ainda não tinha encontrado.
A sexta etapa, entre Ponte Vedra e Caldas dos Reis foi um
pouco maior, embora sem dificuldades de registo. Conversámos sobre
espiritualidade e religiosidade, sobre a culpa cristã e o espírito de sacrifício que nos aperta, mesmo quando temos consciência dele. Falámos da
procura de algo que nos centre na nossa humanidade ligada com os outros e com a
natureza, com os nossos lados solares e lunares, ou com as nossas qualidades e
defeitos – o bem e o mal, como parte integrante de ser pessoa.
Já em Padrón, seguimos as indicações de duas peregrinas
espanholas com quem estivemos à conversa enquanto demolhávamos os pés num
tanque de aldeia e ficámos numa hostal sossegada e limpa.
A minha amiga
lembrou-se, e bem, de perguntar num dos hotéis das termas (água quente não sulfurosa,
muito parecida com a de Chaves) se era possível fazer uma sessão termal não
estando alojadas no hotel.
Foi possível. Fomos à vez porque só ela é que tinha
trazido bikini e pagámos €12 cada uma por uma retemperadora sessão de meia hora
numa piscina com água termal, jacuzi e jactos de água que massajavam todo o
corpo.
Foi um luxo acessível que me fez um bem imenso e me deixou
retemperada.
- - O que Levar?
Existe a possibilidade de ter a mochila
transportada a um preço variável entre €5 e €7 por etapa. De qualquer maneira,
para mim a opção foi por levar uma mochila leve e com os pertences muito bem
escolhidos.
Um par de calçado suplente, pouca roupa, leve,
de algodão, legings, uma toalha pequena, um páreo, roupa interior com destaque
para um número razoável de meias que convém mudar com frequência, bolsa de
higiene com embalagens pequenas, onde não pode faltar um creme hidratante com
que se massaje várias vezes ao dia os pés e as pernas, um impermeável, cantil e
uma lanterna pequena. Um pequeno caderno para notas e uns óculos de sol. Uma
fita para prender cabelos desalinhados que não vêm cabeleireiro nem secador.
A sétima etapa, entre Caldas dos Reis e Padrón(terra
da grande poetisa Rosália de Castro, contemporânea da nossa Florbela Espanca),
foi suave e sem dificuldades de maior.
Inevitável pensar naquela frase – tanta casa sem gente e
tanta gente sem casa…
Nesta travessia da Galiza percebe-se que foi uma terra
onde a vida nem sempre foi fácil, onde muitos imigraram e onde as casas, em
regra enormes, aparentam um valor simbólico na luta pelo sucesso. Mais ou menos
conseguido. Com investimentos variáveis e marcas do tempo, nem sempre generoso.
Algumas casas foram ocupadas pela natureza e davam sinais de desamor e
abandono.Outras mostravam o investimento e a estima – O jardim está bonito, sim,
mas dá-me tanto trabalho!respondeu-nos uma senhora
Pelo meio da etapa cruzámo-nos com pessoas que fazem
pequenos troços do caminho, no contexto de
excursões e depois retomam os autocarros em pontos combinados. Destaco
também a conversa com um Finlandês entradote que vinha a fazer o caminho desde
Lisboa. Estava a adorar mas tinha saudades da família, em especial dos filhos e
dos 4 netos, que queria trazer com ele num próximo caminho.
Almoçamos muito bem uma favada (feijoada) acompanhada por
pimentos padron num daqueles sítios à beira da estrada com um restaurante e uma
loja vende tudo.
Saímos pela primeira vez sem abastecimento porque era
domingo e não encontrámos nada aberto. Ao longo do caminho, quebrei a regra de
não ‘chinchar’ e comi figos, medronhos, tomates e maças. Nada me fez mal.
Entretanto, fomos construindo a ideia de fazer uma sopa,
inspirada na portuguesa sopa da pedra, com o que o caminho nos dava –
castanhas, uns vagens de feijão (uns frescos e outros maduros), um pimento
vermelho, uma maçã e umas folhas de couve galega, apanhadas já perto do
albergue de Padrón. No albergue, onde encontramos sempre coisas que outros peregrinos
deixam, juntámos uma pitada de sal e um pouco de azeite, um bocadinho de
gengibre e uma pitada de arroz. Estava uma delícia e encheu a cozinha de um belíssimo aroma. Seguindo o uso dos albergues, partilhamos a sopa com quem quis
e estivemos a comer com um brasileiro que estava a fazer o caminho com
familiares e amigos.
A oitava e última etapa de Padrón a Santiago foi a mais
longa e talvez a menos interessante. 25 km por sítios nem sempre bonitos, com
tantas subidas e descidas que se torna saturante. Geri sentimentos ambivalentes
com a vontade e a pena de chegar a Santiago. Com mais tempo teria ido a Finisterra
e descansaria um dia, mas desta vez não podia ser assim.
Antes das 9h já estávamos na rua prontas a caminhar e
deitámo-nos já passavam das 23h, numa hostal em Santiago. Fizemos paragens muito simpáticas em cafés e roulotes ao longo do caminho que serviam de
descanso, convívio e abastecimento. Para além do inevitável carimbo na
caderneta.
À medida que nos aproximamos de Santiago aumentam os
peregrinos, em grupo ou sózinhos e a conversa sobre os Caminhos. As jovens
polacasque faziam troços do caminho a rezar em voz alta. O jovem casal russo
que tinha uma ideia muito contestária do ponto atual da civilização ocidental.
A velha senhora do Canadá que seguia mais devagar mas que tinha vindo desde
Lisboa com uma energia que metia qualquer jovem num chinelo.Gente de todo o
lado, como é costume e com um espírito de inter-ajuda e de incentivo ao outro.
Chegámos exautas a Santiago por volta das seis da tarde. A cidade, que vive dos peregrinos e da industria da fé,
está tomada por homens de farda cinzenta, que não permitem entrar em lado
nenhum com mochilas, que estão à entrada
da catedral e de outros monumentos e que, de repente, nos fazem sentir desajustadas.
Mal vindas. Como se não fizéssemos parte do turismo desejável.
Enfrentámos a fila para receber a Compostela (discutindo
com o homem cinzento que governava a fila e cuidava para que as mochilas não
entrassem), a minha amiga foi buscar a mochila ao Seminário de Santiago Maior
(um hotel bastante luxuoso no centro da cidade) onde não tivemos vaga, tentámos
perceber o horário dos comboios de regresso para Portugal, fomos à Catedral - e com isto era 20h, estávamos cansadas e carregadas e não tínhamos onde dormir.
Fomos salvas pelo encontro com a jovem russa que tínhamos conhecido no Freixo. Fizemos uma festa e ela indicou-nos o albergue onde estava, perto da estação – o que era simpático porque eu tinha decidido sair às
5 h da manhã (só saiam 2 comboios com transbordo para Portugal e o mais tardio,
não tinha ligação do Porto para Lisboa). A minha amiga ficaria mais um dia em
Santiago.
Atravessamos meia cidade para ir comer a um restaurante
que lhe tinha recomendado e que, de facto, era muito agradável – espaço cuidado
ao estilo rústico com charme, respirando cultura, ponto de encontro de
intelectuais e artistas, galegos e portugueses. Só tive pena de estar tão
cansada que não tirei todo o partido, mas ainda assim foi um belo e
retemperador jantar.
De novo atravessámos meia cidade até ao hostal. Era
acolhedor, limpo e simpático. Tomei banho e dormi 4 horas num sono só.
Desperta e cansada, apanhei o comboio às 05.15h para Vigo, ainda de noite.
Uma hora de espera em Vigo com um bom pequeno-almoço na estação e entretanto ficou dia. O comboio português parte às 9h e chegou ao Porto as 10,20h, hora portuguesa. O barulho do motor lembrava aquelas motos velhas que se deslocam em esforço. Na carruagem estão mais alguns peregrinos de regresso (reformados que, pela bagagem, fizeram o caminho na versão hotel), dois casais ingleses e um casal australiano. Conversam sobre o caminho, sobre a vida, sobre como gostam de Portugal, salientando a limpeza das terras e o acolhimento dos portugueses.
Vou distraída, dormito e estou pouco atenta à paisagem. Olho para fora de vez em quando e localizo algumas estações. S. Pedro da Torre. Viana do Castelo. Tamel. Midões. Nine. No Porto mudamos de comboio e entram muitos passageiros. Converso com uma jovem italiana que está a viver em Londres e viaja de visita a Portugal, bem documentada. Sai em Coimbra, depois de me ter pedido sugestões para visitar em Lisboa.
Chego às duas da tarde a Sta. Apolónia e atravesso com tranquilidade a cidade em obras até ao Cais do Sodré. Ainda paro no largo do município para beber uma limonada e fumar um cigarro.
Antes do Cais do Sodré sou abordada por uma senhora brasileira que olhou para a mochila com a Vieira de Peregrina e me perguntou se eu vinha do Caminho de Santiago. Acabada de chegar, digo-lhe eu.
- Oi moça, me conta tudo porque eu vou de viagem amanhã para fazer o Caminho de Tui a Santiago, pediu ela. E estive a conversar meia hora, partilhando as minhas experiências de peregrina.
Já no comboio suburbano lembro uma frase que estava grafitada numa parede à chegada a Santiago ‘O melhor do caminho é chegar a casa’.
Fiquei a pensar com sentimentos contraditórios. Parece-me que o tempo voou...