Reconheço que o meu
lado profissional ocupou uma parte muito importante da minha vida. Segundo os
meus filhos, ocupou demasiado. Não me foi fácil (ainda não é) conciliar a vida
privada e de trabalho – mesmo num cenário de vínculo duradouro por conta de
outrem, onde não experimentei o desemprego.
Até onde me lembro
nunca tive uma ideia de carreira balizada por uma posição hierárquica, por ter
mais poder ou mais dinheiro.
Hoje o trabalho ocupa
menos espaço relativo.
Embora exija uma
travagem deliberada. Comecei a tentar travar nos meus 40 anos e ainda hoje me é
difícil não me afogar em trabalho. O que é aparentemente paradoxal porque sou
funcionária pública e tenho um horário de trabalho de 35h semanais.
O problema é que
essas são as horas pagas (muito mal pagas, diga-se de passagem) a que se somam
muitas outras de um voluntariado invisível. As solicitações são muitas. Para
fazer, para organizar e para pensar, para projectar, para estar na linha da
frente em termos de informação e de inovação. Também existe pressão para
aprofundar conhecimentos – é preciso saber mais e ter mais competências.
Se quiser ser
sincera, o que faz a diferença não são tanto as solicitações externas, mas sim
as formas como as sentimos e as exigências internas de cada pessoa. Como diz o
meu amigo Álvaro: - O trabalho só aparece
a quem o faz.
Em última análise
ganhamos o mesmo do que quem faz menos e/ou pior.
Mas eu sou uma
fazedora e não é a renumeração que me move.
Estando garantida
(mesmo que seja magra) fico disponível para um compromisso psicológico com o
que estou a fazer, que vai para além de um quadro funcional ou de um contrato
de trabalho.
Conheço muita gente
que trabalha assim no meu campo profissional – algumas assistentes sociais e
outros interventores sociais, alguns educadores e professores, alguns médicos e
enfermeiros, alguns gestores, alguns artistas … talvez o traço comum seja a
paixão pelo que fazem, pelos públicos com que trabalham e um certo brio, uma
vontade de ‘fazer a diferença’ tentando fazer bem. Ser trabalho com gente
dentro, também é relevante.
No limite, existem
pessoas que dedicam vidas inteiras aos respectivos trabalhos, quase como um
sacerdócio. Com sentido de missão e renúncias, claro.
Não vou esmiuçar
motivações porque generalizar é tentador e perigoso (acabei de o fazer).
Para mim o trabalho
faz-se por projectos.
Em ciclos -
Investimento, realização e mudança. Mudei de trabalho ou de serviço/instituição
sempre que senti esgotado o compromisso.
A minha trajectória
profissional foi norteada pela ideia de compromisso com o que estava a fazer
(com os públicos, com as equipas e os projectos) mas também com a aprendizagem
– preciso de me sentir desafiada e gosto de causas difíceis.
Hoje, com quase 40
anos de trabalho, continuo a querer (não sei de consigo) fazer a diferença no
trabalho que faço e a querer aprender.
Esta semana tive um
incidente de trabalho que me irritou bastante.
Desloquei-me em serviço à consulta
externa de Psiquiatria do antigo hospital Júlio de Matos em Lisboa para falar
com um Psiquiatra que acompanha um dos jovens com quem trabalho. Depois de
algumas tentativas de contacto goradas lá consegui a informação de que ele me
atenderia na vez de consulta do jovem. Quando cheguei dirigi-me ao balcão e
informei ao que ia, a senhora avisou o médico e ele fez saber que me atenderia
no final da consulta. Uma hora depois, dirijo-me novamente ao balcão de apoio
administrativo para saber qual a estimativa de espera.
Deparei-me com 2 funcionários
ocupadíssimos a jogar no telemóvel que primeiro me ignoraram (a experiência de
invisibilidade não é simpática), depois uma das funcionárias mandou-me esperar
na sala de espera sem querer saber qual a minha questão e por fim, quando eu
coloco a questão de saber em que ponto é que estava o atendimento do médico e
qual seria a estimativa de tempo para o final da consulta, o outro funcionário
respondeu com maus modos que não fazia a menor ideia, nem tinha que saber.
Um quarto de hora depois sem qualquer
informação dei por terminada a espera e pedi o livro de reclamações.
Mandaram-me para o gabinete do utente que infelizmente está associado a colegas
minhas, sabe Deus porquê. Escrevi o que tinha a escrever e fui embora.Com
amargo de boca e a falar sozinha.
Irritada por ter perdido uma tarde e não
ter conseguido fazer o que vinha fazer. Mas também por ter experienciado um
circuito de consulta relativamente fechado, com poderes bem vincados e onde se
sente que a doença mental não é como outra doença qualquer - tem um estigma e muitos
medos associados. À irritação juntava-se a indignação. Senti-me destratada. Por
mim e sobretudo pelo trabalho de articulação que vinha fazer em prol da auto
determinação daquele jovem.
Achei que a prepotência daquelas pessoas
que tinham por função acolher os doentes, só acontecia por falta de respeito e
pouco profissionalismo. E que no mundo onde trabalho não é normal deixar uma
pessoa à espera muito para além da hora combinada, sem uma palavra.
Na verdade tenho
baixa tolerância a maus atendimentos.
Mesmo sabendo que o
impacto prático é baixo, faço questão de utilizar o mecanismo da reclamação para
identificar o problema e também porque acredito que é uma pressão para
qualificar os serviços. Hoje que tanto se fala em qualidade de serviço, não considero
admissíveis certos procedimentos.
Com este incidente fiquei
a interrogar-me sobre esta coisa aparentemente volátil que é – Fazer a
diferença.
Porque é que nos
serviços (nomeadamente mas não exclusivamente, no serviço público) é difícil
encontrar profissionais que façam a diferença?
Sei que a maioria das
nossas organizações não premeia o mérito nem a dedicação, não alinho na
propaganda mercantil do individualismo, reconheço que não temos que ser os
melhores, mas também não posso pactuar com uma lógica de ‘para quem é, bacalhau basta’ ou ‘pagam-me mal e não sou obrigado a fazer melhor’.
Sei que sou bem
atendida quando sou bem informada e tratada com dignidade. Quando me
surpreendem pela positiva, então fazem a diferença.
Sindicalidades à
parte, nunca lidei bem com as práticas profissionais que descontam nos clientes
as insatisfações laborais e/ou pessoais.
Aprendi que a nossa
construção identitária se faz ao longo da vida, integrando as experiências
reflectidas, os conhecimentos e todas as esferas de vida – não sou o que faço,
mas o que faço (e como faço) diz muito sobre quem sou.
Enquanto estou, faço
parte.
Isabel Passarinho
Infelizmente este tipo de situações continuam a ser recorrentes neste tipo de serviços..., no entanto continuo a achar que náo são a maioria....de vez aparecem pessoas "normais" que fazem a diferença. No meio da "anormalidade" há sempre a normalidade, para haver algum equilibrio.
ResponderEliminarÉ terrível a postura que encontramos muitas vezes para lá dos balcões de atendimento.
ResponderEliminarLina Soares
http://trintaporumalinhanoticias.blogspot.pt/