Hoje acordei com dois
25 de Abril na alma.
Um deles faz hoje 4
meses que já cá não estás para o celebrar. Mas "enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar". O
outro é isto, é esta coisa de ires-me morrendo aos bocadinhos, num processo
lento e salteado mas quase diário. Eu que achava que se morria e pronto, ou que
seria um "fade out"
razoavelmente regular. Só que não.
Há dias que parece que
morreste tudo de uma vez, outros nem me lembro que morreste, outros bates à
minha porta a meio da noite ou de uma manhã, ou do duche, ou de um olhar que
poisa numa das muitas coisas/livros teus por aqui espalhados e lembras-me que
já cá não estás, estando. Para quem fica, a morte é um processo muito vagaroso
e irregular. Para quem vai, é pragmático. Uma espécie de on/off. Acho... Não sei, nunca morri, calhando também não será bem
assim.
Mas hoje cá estou,
essa é que é essa, com dois 25 de Abril na alma.
Em nome da tua integridade sem limites e do teu esforço por um mundo justo,
e em nome daquele dia em 74 em que aprendi, no alto dos meus 13 anos, que um
homem chora - desde então não consigo ouvir a Queixa
das Almas Jovens Censuradas - Natália Correia - sem ter como fundo o teu
semblante desse dia, a tua jovem alma censurada, sentado no sofá com as ditas a
correrem pela face e aí percebi que os dias, os anos, que para mim tiveram
todas as cores de uma infância feliz, afinal também podiam ter sido cinzentos,
cinzentos – e volta a
chorar, desta vez de alegria, emoção, felicidade imensa. Algo de muito bom acontecera e eu estava feliz também por perceber que era
um momento único, que merecia o sobressalto quase parecido ao que devia ser o
de um parto. Um triunfo da vida.
Aquele dia em que se
levantaram as comportas para que as águas pudessem finalmente correr de forma
livre, transparente e igual (mal sabia eu que o bicho Homem não é assim tão fácil de
“resolver”), em nome desse dia e mesmo não indo a lado nenhum que
ainda ando aqui às voltas com muita coisa tua para arrumar, te garanto, a ti
que nunca deixaste que te “penteassem o crânio
com as cabeleiras das avós”, nos garanto que "enquanto houver ventos e mar, a gente não vai parar". Com
o corpo, agora sim, a poder ser cada vez mais parecido ou “igual à forma da alma que o procura - Saravá!”, e muito discernimento.
Nota: Foi antes do 25 de
Abril que me “ensinaste” uma verdadeira lição por osmose através da voz do José
Mário Branco e das palavras da Natália Correia e das lágrimas desencantadas que
se te escaparam numa enorme comunhão com toda a carga das palavras, o cinzento
dos teus tempos, em contraste com a minha infância tão cheia de sol. E o
significado de “esquifo”.
No turbilhão do meu dique de 13
aninhos giravam também, já talvez desde os 11, 12, outros sinais que me
trouxeram alguns dissabores “académicos” (sobretudo no
colégio de freiras de onde saí aos 12) e que acrescentaram mundos ao
meu mundo. Aqui vão os que me rolaram na memória assim de supetão nesta manhã
de sol: o Zeca com as Cantigas de Maio, o Lopes Graça, o José Gomes Ferreira, o
Mário Viegas com o seu Poemarma, o Mário Branco, a Joan Baez (álbum sobre a guerra
do Vietnam, entre outros) a Anne Frank, os Água Viva, o Ney
Matogrosso, O Principezinho, a Irene Lisboa, o Namora, O Fernão Capelo, os
Capitães da Areia, um álbum acho que com o Chico Buarque que não me lembro o
nome mas ainda canto de cor - todo o
morro entendeu quando o Zelão chorou, ninguém riu ninguém brincou e era
carnaval, ou, a Dina subiu no morro
do Pinto prá mi procurá, não me encontrando, etc. etc. - se alguém souber
do álbum, adorava recuperá-lo (Sertão e Favela?). Mas também
os Black Sabbath, o Frank Zappa, os Deep Purple, o Léo Ferré, o Regianni, o
Moustaki, os Hippies, o Tintim, o Astérix, o Taka Takata, o Alves Redol, a
Pearl S. Buck, o Fanhais - que se cantava no colégio de freiras - era um
colégio progressista até, o Sagrado Coração de Maria! Estava dispensada das
aulas de moral e religião, mas, teimosamente e para enorme teste à paciência e
democracia da minha professora, como as questões da moral me interessavam
bastante para mais enquadradas através do fenómeno religioso, fazia questão de
não faltar.
Chega. Haverá alguns eteceteras. Mas
era neste caldo turbilhónico que me encontrava no 25 de Abril de 74, quando um
vento impaciente, incrédulo, feliz e também com lágrimas, varreu a sala da
nossa casa e se festejou. Num segundo, todo o turbilhão de anos de contestação
pode desaguar na promessa de futuro.
Continuaremos o melhor que
soubermos.
Obrigada pela paciência e pela
aposta e pelo genuíno respeito com que aturaste todo o meu percurso até aí,
todas as perguntas e também todos os desafios à tua autoridade pela
adolescência fora.
Mais obrigada ainda pelo exemplo que
foste. Passar por tantos cargos públicos sem um nico de proveito pessoal, com
um rigor quase espartano. É raro e é motivo de imenso orgulho e lição de
carácter para muita gentinha. Privilegiaste sempre a qualidade versus
quantidade. Antítese desta fúria consumista - mudaste de aparelhagem quê, uma vez na vida? E por avaria total da
primeira, bem como a TV, etc. etc. Computador, para quê? A tua propriedade
intelectual não saiu minimamente beliscada. Escreveste, escreveste, escreveste…Telemóvel?
Só no carro, trabalho “oblige”. Uma lição de separação de
águas. De espaços.
E remato com uma frase que me
ofereceste grafitada num azulejo e que acompanhou a minha adolescência e passou
de mansinho para o quarto da minha filha, desde cedo:
“There is a fault in reality. Do not adjust your mind”
Patrícia Gago
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