À décima crónica, o Nuno pede-me periodicidade e um dia certo para
publicar. Respondo-lhe que sim, sem hesitar muito, com a primeira coisa que me
vem à cabeça.
– Ok, então fica
mensal e comprometo-me ao penúltimo dia de cada mês.
Reajo muitas vezes
assim. Sem pensar muito. Para o bem e para o mal, muitas das coisas na minha
vida aconteceram desta forma. E algumas não foram mal.
O que é paradoxal com
outros lados meus, muito meditativos e procrastinadores.
Quando lhe respondo não faço a menor ideia do que
vou escrever mas tenho uma espécie de fé que me faz acreditar que o vou fazer.
Ele sugere uma lista imensa de actualidades,
esquecendo que não tenho veia jornalística. Não me apetece agarrar nenhuma das suas
sugestões. E sei que escrever me está a ficar cada vez mais difícil.
Talvez. Eu gosto de achar que não me levo muito a
sério mas talvez me comece a levar um bocadinho a sério. Porque não?
Sério é o gosto que continuo a ter pela leitura e
pela escrita, séria é a minha perspectiva que pode ser pouco profunda mas que é
verdadeira com quem sou, séria é a humildade de me considerar do meu tamanho (nem
maior, nem menor) e sem pretensões.
Interessam-me crescentemente os processos criativos.
Preciso disso para não morrer de realidade, alguém me disse.
Sou uma andarilha por contextos e eventos culturais
diversos. São formas que encontro de ver o mundo com outros olhos, outros
sentidos, outras linguagens e de não ficar fechada na minha forma de pensar. Faz-me
sentir e pensar, sentimentos e pensamentos que não teria apenas por minha
conta.
Ainda agora vim de assistir a um espetáculo de
dança contemporânea no Espaço Alkantara, em Lisboa, com criações a partir de O Cansaço dos Santos de Clara Andermatt
(1992) e Um gesto que não passa de uma
ameaça, de Sofia Dias & Vítor Roriz (2011) interpretados em duetos por
alunos do Programa de Estudo, Pesquisa e Criação Coreográfica do Fórum Dança.
Adorei!
São linguagens expressivas fortes, tecnicamente
elaboradas e que mexem connosco, fazem pensar... e isso de fazer pensar tem muito que se diga, numa época em que se retrocedem
conquistas de civilização e direitos humanos e se erguem muros a muitos
propósitos.
Por outro lado fui ganhando consciência de que
escrever pode ser um acto criativo. Um acto de grande responsabilidade mas
democrático, no sentido em que pode estar ao alcance de qualquer um e não
apenas de artistas classificados.
Como dizia Foucault[1]
(autor de As Palavras e as Coisas) uma
das maiores tarefas do pensamento tem a ver com o problema do sujeito e a sua
relação com a escrita.
Qual a minha relação com a
escrita? E sobre quê então quero eu escrever?
Confesso que não ligo
muito a bem materiais, ando seduzida por inspirações budistas e por filosofias
de partilha mas por hoje quero falar de heranças, de legados, também de bens e de
propriedades que tomam conta dos proprietários.
Falar não será bem o
caso, porque só tenho interrogações.
Interrogo-me sobre qual
o legado que quero deixar? E sobre as formas como lido com o legado que recebi?
As coisas e o resto.
Sobretudo as coisas pelo valor real e simbólico que têm.
Que passagem de
testemunho? Como é que os meus filhos irão entender-se (ou entender) com esse
testemunho quando eu não estiver?
Gosto daquela ideia
que só morremos quando morre a última pessoa que se lembra de nós.
Será que caí na velha
armadilha da busca da eternidade?
Porque é que isto me
ocupa?
Habito uma câmara de tortura, em caixa de
vidro com projecções de contextos de vida – casa, trabalho, família, amigos,
lazer. Um cubo mágico. Nessa caixa faz de conta existem várias torturas.
Às vezes é uma das faces que me esmaga,
com realidade ampliada. O estado de não relação com aqueles que amo. Outras
vezes é o chão que desaparece e deixa-me suspensa. Tento não respirar para não
cair mais, com medo do abismo, da queda livre, do desconhecido. Outras vezes
ainda é o espaço entre o tecto e o chão que diminui e me esmaga. Fico sem ar,
sem horizonte e sem perspectiva. Sem acção. Outras vezes corre bem. Tenho
momentos descontraídos, de alegria e de nutrição.
Mas nunca sei quando a seguir a caixa
decide uma tortura diferente. E também não posso saber se aguento a próxima
tortura. E perguntarão, porque raio não saio da caixa?
Não saio porque tenho medo. Também tenho
medo ficando, mas é um medo conhecido.
Os limites das prisões que construímos
laboriosamente são muito reais.
Acreditando que os
planos para a vida são desarrumados pela própria vida, na maioria dos caos,
sinto necessidade de preparar a velhice, sabendo que é impreparável.
Talvez não seja bem
isso.
Talvez seja mais da
ordem do que é que eu ainda quero fazer? Como é que sonho outra vez? Como é que
engano a solidão?
Não sei muito bem. Estou
numa fase da vida que me apetecia estar mais ligeira, mais desprendida e ando
às voltas com o que me deixaram e com o que gostaria de deixar.
As coisas evocam
memórias, contam histórias e exigem ser cuidadas.
Ainda mais no caso da
minha família de origem modesta onde o património foi conseguido com sacrifício
e muito trabalho.
Se ganhar perspectiva
posso pensar que, em regra, o património subsiste apenas a algumas gerações e
depois passa de mão, degrada-se ou transforma-se. São coisas, casas, terras,
utensílios…nada por que valha a pena ocupar a vida.
Só que… um dia as
casas que habitámos estavam cheias.
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