O Xico faz hoje anos
- 84 anos de uma vida dura de trabalho. Está casado há muitos
anos. Nem sabe ao certo. Vive numa aldeia com
a Tina, com alguma família e vizinhos por perto mas já com muitas baixas na sua
geração. Não têm filhos. Com uma certa mágoa.
- Ninguém tem obrigação de nos ajudar! Diz
a Tina. Cada um tem a sua vida e nós aqui
estamos até que Deus queira.
O Xico é muito
poupado nas palavras.
- Estamos cá de empréstimo, diz em nota
filosófica.
Não vivem mal. Têm
casas, terras, amealharam, não se renderam ao consumo, não gastam muito e ainda
amanham uns bocadinhos de terra perto de casa de onde vão buscar cereais, os
legumes, os frescos e algum sentimento de ocupação e utilidade.
Um pouco por todo o
nosso pequeno país, sobretudo nos meios mais rurais, é frequente as pessoas
serem designadas por uma relação especial. É uma espécie de identidade
relacional em que a definição de um se faz a partir de uma relação geradora com
outro. Mas o Xico e a Tina
estão velhos e pesa-lhes a vida. E a solidão. A velhice é uma
chatice!
Por mais que se fale
em envelhecimento ativo e que a publicidade utilize cada vez mais senhores e
senhoras de cabelos brancos, sorriso jovial e aparentemente sem problemas, desconfio
que seja uma fase da vida menos simpática.
Bom, na verdade cada
fase da vida tem os seus desafios e provavelmente aquela que estamos a viver é
sentida como a mais dura.
Já tenho algumas
amigas que contraíram velhice e que se queixam. As perdas (de dentes, de
audição, de cabelo, de elasticidade, de frescura, de paciência…) parecem
superar os ganhos - de peso, de gravidade, de sabedoria, de dores…
- Já viste a pele das minhas mãos? –
Perguntava-me uma delas, à beira dos 60 e visivelmente alarmada.
E a memória? Ou as
suas falhas. E o sentimento de aproximação ao fim de linha? E a dificuldade em
voltar a acreditar, a ter sonhos, a desejar qualquer coisa ou alguém? E o
pânico de ficar dependente, de não ser autónoma? E a perda de relações
significativas?
Mas afinal quando é
que estamos velhos ou velhas?
Recuso o limiar instituído dos 65 anos. Até porque já não
corresponde à idade da reforma, que era o marco da improdutividade a partir do
qual já podíamos ser velhos.
Conheço velhos de 20,
de 30 anos, de 50, de 70 e de 80 e muitos. São todos diferentes, é verdade. Mas
também não caio na esparrela de dizer que a velhice é um estado de espírito. Conheço velhos cheios
de medo de morrer. Tristes. Desconfiados. Avarentos. Sós. Amargurados. E outros
que não. Algumas pessoas
parecem não ter idade.
Ou melhor, poderiam
ter qualquer idade porque esse é um dado que não importa muito. Pessoas que não
desistem. Que riem e choram. Que tem dias bons e outros nem por isso mas que
não se deitam sem agradecer, seja à vida ou a qualquer outro ser ou entidade. Pessoas que continuam
a aprender, a desafiar-se, a querer estar melhor consigo e com os outros. Que
têm amigos de todas as gerações. Que vão ao baile ou ao museu. Que arriscam
compreender outras perspetivas.
O Xico teve
recentemente um pequeno AVC que o deixou estranho. Fala ainda menos, já
não vai à horta, dá uma volta à casa e senta-se, cansado. O seu território
ficou mais estreito e mais doméstico. A televisão ficou mais longe. Olha para
ela sem ver, sem ouvir, sem interesse.
A Tina, que é uma
mulher de saúde frágil, desmultiplica-se em cuidados e desvelos para ver o seu
homem novamente ativo e cheio de afazeres. Teme por ele e por si. Está triste. Sente a
vida como um calvário a cumprir, como um problema sem solução. E zanga-se
quando lhe apontam algumas possibilidades.
Na sua forma de
entender a vida, os cuidados profissionais e as respostas institucionais não
são opção. Não para si nem para o seu marido.
O Xico sente a vida
gasta e as palavras também. Gostava de ver mais
crianças na aldeia. Isso e os campos
todos tratados e cheios de árvores de fruto como quando eram novos…
Isabel Passarinho
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