quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Crónica Social - Fazer a diferença


Reconheço que o meu lado profissional ocupou uma parte muito importante da minha vida. Segundo os meus filhos, ocupou demasiado. Não me foi fácil (ainda não é) conciliar a vida privada e de trabalho – mesmo num cenário de vínculo duradouro por conta de outrem, onde não experimentei o desemprego.
Até onde me lembro nunca tive uma ideia de carreira balizada por uma posição hierárquica, por ter mais poder ou mais dinheiro.

Hoje o trabalho ocupa menos espaço relativo.
Embora exija uma travagem deliberada. Comecei a tentar travar nos meus 40 anos e ainda hoje me é difícil não me afogar em trabalho. O que é aparentemente paradoxal porque sou funcionária pública e tenho um horário de trabalho de 35h semanais.

O problema é que essas são as horas pagas (muito mal pagas, diga-se de passagem) a que se somam muitas outras de um voluntariado invisível. As solicitações são muitas. Para fazer, para organizar e para pensar, para projectar, para estar na linha da frente em termos de informação e de inovação. Também existe pressão para aprofundar conhecimentos – é preciso saber mais e ter mais competências.
Se quiser ser sincera, o que faz a diferença não são tanto as solicitações externas, mas sim as formas como as sentimos e as exigências internas de cada pessoa. Como diz o meu amigo Álvaro: - O trabalho só aparece a quem o faz.

Em última análise ganhamos o mesmo do que quem faz menos e/ou pior.
Mas eu sou uma fazedora e não é a renumeração que me move.
Estando garantida (mesmo que seja magra) fico disponível para um compromisso psicológico com o que estou a fazer, que vai para além de um quadro funcional ou de um contrato de trabalho.
Conheço muita gente que trabalha assim no meu campo profissional – algumas assistentes sociais e outros interventores sociais, alguns educadores e professores, alguns médicos e enfermeiros, alguns gestores, alguns artistas … talvez o traço comum seja a paixão pelo que fazem, pelos públicos com que trabalham e um certo brio, uma vontade de ‘fazer a diferença’ tentando fazer bem. Ser trabalho com gente dentro, também é relevante.

No limite, existem pessoas que dedicam vidas inteiras aos respectivos trabalhos, quase como um sacerdócio. Com sentido de missão e renúncias, claro.
Não vou esmiuçar motivações porque generalizar é tentador e perigoso (acabei de o fazer).
Para mim o trabalho faz-se por projectos.
Em ciclos - Investimento, realização e mudança. Mudei de trabalho ou de serviço/instituição sempre que senti esgotado o compromisso.

A minha trajectória profissional foi norteada pela ideia de compromisso com o que estava a fazer (com os públicos, com as equipas e os projectos) mas também com a aprendizagem – preciso de me sentir desafiada e gosto de causas difíceis.
Hoje, com quase 40 anos de trabalho, continuo a querer (não sei de consigo) fazer a diferença no trabalho que faço e a querer aprender.

Esta semana tive um incidente de trabalho que me irritou bastante.
Desloquei-me em serviço à consulta externa de Psiquiatria do antigo hospital Júlio de Matos em Lisboa para falar com um Psiquiatra que acompanha um dos jovens com quem trabalho. Depois de algumas tentativas de contacto goradas lá consegui a informação de que ele me atenderia na vez de consulta do jovem. Quando cheguei dirigi-me ao balcão e informei ao que ia, a senhora avisou o médico e ele fez saber que me atenderia no final da consulta. Uma hora depois, dirijo-me novamente ao balcão de apoio administrativo para saber qual a estimativa de espera.
Deparei-me com 2 funcionários ocupadíssimos a jogar no telemóvel que primeiro me ignoraram (a experiência de invisibilidade não é simpática), depois uma das funcionárias mandou-me esperar na sala de espera sem querer saber qual a minha questão e por fim, quando eu coloco a questão de saber em que ponto é que estava o atendimento do médico e qual seria a estimativa de tempo para o final da consulta, o outro funcionário respondeu com maus modos que não fazia a menor ideia, nem tinha que saber.
Um quarto de hora depois sem qualquer informação dei por terminada a espera e pedi o livro de reclamações. Mandaram-me para o gabinete do utente que infelizmente está associado a colegas minhas, sabe Deus porquê. Escrevi o que tinha a escrever e fui embora.Com amargo de boca e a falar sozinha.
Irritada por ter perdido uma tarde e não ter conseguido fazer o que vinha fazer. Mas também por ter experienciado um circuito de consulta relativamente fechado, com poderes bem vincados e onde se sente que a doença mental não é como outra doença qualquer - tem um estigma e muitos medos associados. À irritação juntava-se a indignação. Senti-me destratada. Por mim e sobretudo pelo trabalho de articulação que vinha fazer em prol da auto determinação daquele jovem.
Achei que a prepotência daquelas pessoas que tinham por função acolher os doentes, só acontecia por falta de respeito e pouco profissionalismo. E que no mundo onde trabalho não é normal deixar uma pessoa à espera muito para além da hora combinada, sem uma palavra.

Na verdade tenho baixa tolerância a maus atendimentos.
Mesmo sabendo que o impacto prático é baixo, faço questão de utilizar o mecanismo da reclamação para identificar o problema e também porque acredito que é uma pressão para qualificar os serviços. Hoje que tanto se fala em qualidade de serviço, não considero admissíveis certos procedimentos.
Com este incidente fiquei a interrogar-me sobre esta coisa aparentemente volátil que é – Fazer a diferença.
Porque é que nos serviços (nomeadamente mas não exclusivamente, no serviço público) é difícil encontrar profissionais que façam a diferença?

Sei que a maioria das nossas organizações não premeia o mérito nem a dedicação, não alinho na propaganda mercantil do individualismo, reconheço que não temos que ser os melhores, mas também não posso pactuar com uma lógica de ‘para quem é, bacalhau basta’ ou ‘pagam-me mal e não sou obrigado a fazer melhor’.

Sei que sou bem atendida quando sou bem informada e tratada com dignidade. Quando me surpreendem pela positiva, então fazem a diferença.
Sindicalidades à parte, nunca lidei bem com as práticas profissionais que descontam nos clientes as insatisfações laborais e/ou pessoais.

Aprendi que a nossa construção identitária se faz ao longo da vida, integrando as experiências reflectidas, os conhecimentos e todas as esferas de vida – não sou o que faço, mas o que faço (e como faço) diz muito sobre quem sou.


Enquanto estou, faço parte.


Isabel Passarinho

2 comentários:

  1. Infelizmente este tipo de situações continuam a ser recorrentes neste tipo de serviços..., no entanto continuo a achar que náo são a maioria....de vez aparecem pessoas "normais" que fazem a diferença. No meio da "anormalidade" há sempre a normalidade, para haver algum equilibrio.

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  2. É terrível a postura que encontramos muitas vezes para lá dos balcões de atendimento.

    Lina Soares
    http://trintaporumalinhanoticias.blogspot.pt/

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